Pode até não parecer, mas a trajetória de Harry Dean Stanton perpassou da metade da história do cinema americano. Atuando desde os anos 1950, no cinema e na televisão, o ator hoje é lembrado principalmente por aquele que é o papel de sua vida, o do solitário e atormentado Travis Henderson, de PARIS, TEXAS, de Wim Wenders, um dos filmes mais belos já feitos. Muitos (eu, inclusive) tiveram a oportunidade de rever por ocasião da morte do ator, em setembro deste ano, como uma homenagem.
LUCKY (2017), de John Carroll Lynch, é uma espécie de filme-testamento do ator. O personagem, um senhor de 90 anos que é veterano da Segunda Guerra Mundial, foi totalmente inspirado em Dean Stanton. Afinal, assim como o personagem, o ator nunca casou, nunca teve filhos (não que ele saiba), começou a fumar desde muito cedo, e também serviu, como cozinheiro, durante a Segunda Guerra Mundial.
Logo, Stanton acaba por interpretar a si mesmo em LUCKY, este filme que parece tão pequeno em suas pretensões, mas que alcança uma dimensão poética impressionante. Na trama, Lucky é um homem velho que vive em uma cidade do interior que mais parece uma cidade fantasma e que descobre, depois de um desmaio, que seu corpo está começando a dar sinais de que pode chegar ao fim. Vemos muitos espaços vazios, desertos, além de bares e restaurantes. Alguns desses lugares se repetem ao longo da narrativa, como que para acentuar a rotina de vida pouco excitante de Lucky.
Essa carência de poucas emoções, ou mesmo de pouca energia para desperdiçar, talvez seja um dos segredos da longevidade de Lucky, junto com o apego à sua vida simples e aos pequenos prazeres que sua vida lhe proporciona. E haja simplicidade em sua vida: as únicas coisas que Lucky abastece no mercadinho são cigarros e caixas de leite. O café é tomado na lanchonete, espaço em que ele é tratado como uma espécie de alguém da família naquela cidade onde todo mundo se conhece.
Importante, gostoso e enriquecedor ter no filme a participação especial do amigo David Lynch, interpretando alguém muito parecido com o Gordon de TWIN PEAKS. Lynch e Stanton trabalharam juntos em diversos filmes. Na nova temporada da série, inclusive, ele aparece em cinco episódios, também em um papel semibiográfico, falando sobre o hábito de fumar desde cedo. Lynch, como um diretor que valoriza muito a figura do homem velho, trata com muito carinho aquele homem que carrega quase um século nas costas.
Algumas cenas são de uma beleza ímpar: a cena do aniversário do garotinho mexicano, em que Lucky canta uma canção em espanhol; a cena da conversa com um colega aposentado das forças armadas que contará uma história fascinante sobre uma garotinha japonesa; a cena em que David Lynch fala sobre o amor incondicional por seu bicho de estimação desaparecido; e há também espaço para o mistério em algumas cenas, ainda que bastante ligadas ao realismo que o filme parece promover.
Não falta espaço para filosofar sobre a finitude, sobre aceitar a realidade como ela é, tanto em discussões dos próprios personagens quanto nas entrelinhas e no quanto o filme fica com o espectador após a sessão. Trabalhos como este justificam a ida ao cinema. Até porque o resultado está mais para uma paz de espírito do que para uma lamentação relativa ao fim de uma jornada.
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