sábado, novembro 04, 2017

MULHOLLAND DRIVE - CIDADE DOS SONHOS / CIDADE DOS SONHOS (Mulholland Dr.)

Como a revisão de MULHOLLAND DRIVE - CIDADE DOS SONHOS (2001) se deu depois de alguns anos, e muitos já viram o filme, eu vou tomar a liberdade de escrever um texto mais com anotações bem livres sobre o impacto desta revisão no cinema em mim, que foi um tanto diferente da primeira vez. Logo, não é um texto para ser lido por quem nunca viu o filme.

Fazendo um breve resumo da história, só para o texto não ficar tão solto, CIDADE DOS SONHOS conta a história de Betty (Naomi Watts), uma jovem que almeja se tornar uma estrela de Hollywood, e que está muito feliz de sair de sua cidadezinha do interior no Canadá para a ensolarada Los Angeles. Lá ela encontra uma mulher desmemoriada (Laura Elena Harring) no apartamento que a tia lhe reservou. Paralelamente, também conhecemos um diretor de cinema (Justin Theroux) que está sendo obrigado por um mafioso a aceitar uma atriz para o papel principal, sob pena de perder tudo o que tem na vida.

Na primeira vez que vi CIDADE DOS SONHOS, título originalmente escolhido pela distribuidora anterior e que deverá ficar como título mais aceito, creio eu, o filme foi recebido por mim como principalmente uma história de horror. Um horror que não dava muito bem para entender o porquê, algo bem parecido com o que aconteceu com ESTRADA PERDIDA (1997). Mas isso acontece principalmente porque o drama da protagonista não está claro na primeira leitura.

Desta vez, a segunda no cinema, passados 15 anos, o que fica mais forte é a questão da perda do grande amor, mais do que o medo, embora o medo seja algo também muito forte e que já comparece de maneira bem perturbadora na sequência da lanchonete, com aqueles dois homens conversando: um deles contando ao outro sobre sonhos que ele teve sobre aquele mesmo lugar, sobre algo muito aterrador e maligno que estava trazendo o mal para aquele ambiente. Revendo, podemos fazer uma ligação desta cena com a queda espiritual da personagem de Naomi Watts, com as decisões que a levaram ao inferno de sua alma.

E esse medo é também o medo de descobrir a verdade, já que há toda aquela construção de um sonho. Sonho de chegar a uma cidade em que uma pessoa pode se tornar uma estrela. Afinal, para que lugar mais representativo da fama e do sucesso do que Hollywood? No começo, a protagonista chega ao aeroporto, junto com aquele casal de velhinhos sinistros, e encontra, dentro da casa da tia, uma mulher linda, perdida, nua, desorientada, desmemoriada, e que se torna o grande amor de sua vida, naquela história que a mente ou o espírito que não está querendo aceitar a condição de fim elabora.

Por isso, uma das cenas mais bonitas é quando as duas fazem amor e Betty diz que está apaixonada por ela, e é uma sequência muito sensual também. Há dois sentimentos muito fortes naquele momento: o amor e o desejo, os dois juntos e potentes. Mais adiante, quando formos levados a um flashback da intimidade das duas na realidade, quando Diane já estava sendo rejeitada por Camilla, percebemos o quanto havia de sexualidade intensa naquela relação.

E, nesse sentido, voltando à questão do medo. Para que medo maior do que aquele medo misturado com uma tristeza muito, muito profunda, que é o que é mostrado na cena mais poderosa do filme, a do Clube Silenzio, quando Rita acorda de madruga e fala para ambas irem àquele lugar, lugar onde no hay banda. Há algo muito bonito dentro dos simbolismos de não haver uma banda tocando e no entanto há som, mas o que há de mais devastadoramente lindo é quando Rebekah Del Rio canta a versão de "Crying", de Roy Orbinson, "Llorando", que se torna ainda mais triste nesta versão em espanhol, mais carregada de sentimentalidade, mais fundo do poço da tristeza e da amargura.

E por mais que já tenhamos visto tantas vezes David Lynch nos carregar para caminhos tão sombrios e tristes da alma, nada se compara a esta sequência arrepiante, embora a primeira vez que vemos CIDADE DOS SONHOS não entendamos direito o que é aquilo ali, no momento em que está acontecendo.

Porém, uma vez que temos o filme na memória, tendo visto uma, duas ou três vezes, e vemos novamente, sabemos que aquele momento é o momento da revelação dolorosa que a protagonista tanto temia e não sabia, o momento em que caem por terra todas as ilusões. Sobra apenas o horror, o horror do que ela foi capaz de fazer. E aí passamos a entender o motivo de aquela restaurante representar algo tão maligno, já que é lá que foi feita uma transação que, segundo disse o próprio assassino contratado, uma vez feita, não haveria mais volta.

Com relação aos simbolismos, algumas coisas são um pouco difíceis de serem decifradas, mas nem tanto. Há muitas pistas fáceis. E quem já está acostumado com os trabalhos de Lynch, principalmente quem viu o novo TWIN PEAKS - O RETORNO (2017), e também TWIN PEAKS - OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER (1992), sabe que tem algo de especial com relação à cor azul. Sempre que o azul aparece, ele tem um indicativo de algo misterioso.

E em CIDADE DOS SONHOS há a antológica caixa azul, que pode representar tanto a realidade nua e crua tomando de assalto todos os sonhos e ilusões, quanto algo de maligno também. A figura daquele mendigo lembra os homens sujos de carvão de TWIN PEAKS - O RETORNO, que na série são agentes do mal ou algo do tipo.

Enfim, ainda há tanto a se falar sobre CIDADE DOS SONHOS, como a cena em que Betty desaparece, como se as duas (Betty e Rita) tivessem se fundido. Aliás, a loira e a morena, o mistério e a verdade, a vida e a morte são elementos muito próximos de UM CORPO QUE CAI, de Alfred Hitchcock. Eis um filme que não se esgota, e querer dar conta de decifrar os enigmas (como eu meio que tentei fazer, quase sem querer, pensando em voz alta) é querer diminuir uma obra cuja dor é o motor de partida.

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