sábado, outubro 24, 2015
O BOULEVARD DO CRIME (Les Enfants du Paradis)
Há filmes que parecem verdadeiros milagres. O BOULEVARD DO CRIME (1945), de Marcel Carné, é um deles. Realizado durante a ocupação nazista na Segunda Guerra Mundial, e em um momento em que tudo era difícil e escasso, sem falar na perseguição de alguns judeus que participavam da produção e por isso tinham que se esconder dos alemães, o filme é uma das obras mais luxuosas e mais ambiciosas da cinematografia francesa.
Com suas mais de três horas de duração divididas em duas partes, que funcionam perfeitamente para separar a trama em dois momentos distintos das vidas dos personagens, o filme foi lançado com êxito logo após o fim da guerra para uma plateia que finalmente podia sentir o gostinho da liberdade, e que certamente deve ter se encantado totalmente com a história de amor e maldade que compõe esse exemplar máximo do chamado realismo poético francês, uma espécie de escola estética que predominou no país nas décadas de 1930 e 40.
Enquanto a Itália em ruínas recomeçou o seu cinema com uma obra moderna, mas totalmente destituída de luxo – ROMA, CIDADE ABERTA –, os franceses puderam se dar ao luxo de iniciar o novo momento histórico com uma superprodução. Até por terem se rendido aos alemães e o país não ter se sacrificado tanto. Mas a própria existência de um filme como esse, feito com tantos problemas de bastidores, tendo mais de 1.500 figurantes (muitos deles faziam parte da Resistência, usando as filmagens como meio de se esconder dos nazistas durante o dia) e a construção do maior cenário em estúdio do cinema francês até hoje, que é o trecho chamado de Boulevard do Crime, a área dos teatros de Paris nas décadas de 1830 e 40 e que também era cenário de muitos crimes. Quer dizer, cerca de cem anos antes daquele momento em que a França estava vivendo.
Mas tanto luxo de nada serviria se não houvesse um cuidado com a dramaturgia, com a construção dos personagens, com os diálogos, com a trama, feita em parceria com o poeta Jacques Prévert, que dá uma dimensão trágica e romântica a personagens como o mímico Baptiste (Jean-Louis Barrault, um ator magnífico) e a intrigante e apaixonante cortesã Garance (Arletty, que nem é tão bela, mas tem um charme tão especial que a torna única). Entre outros personagens também importantes, claro, embora eles dois sejam os de maior destaque.
Certamente porque são eles que mais aproximam o filme de um romantismo irresistível, embora também possamos dar o devido valor a Nathalie (María Casares), a moça que nutre uma paixão por Baptiste e que sofre bastante ao vê-lo apaixonado por outra mulher. Ela representa a estabilidade na vida de Baptiste, enquanto Garance seria a tempestade. Lembrando que há mais outros três personagens também apaixonados por Garance, na história.
No mais, O BOULEVARD DO CRIME traz uma série de outras subtramas interessantes, envolvendo, inclusive, atos criminosos por parte de alguns personagens, bem como atos louváveis, como a do homem rico que pede Garance em casamento, mas que em nenhum momento pretende escravizá-la à sua vontade.
Como boa parte da trama se passa em um ambiente de teatro, o filme se apresenta como uma linda homenagem à arte mais popular daquele século, como o cinema seria no século XX. Em alguns momentos, inclusive, os atores falam como se estivessem declamando para uma plateia. Esse estilo de dramaturgia torna o filme ainda mais belo.
O BOULEVARD DO CRIME foi visto em uma belíssima cópia restaurada em DCP 2K no Cinema do Dragão na semana que talvez tenha sido a mais especial do ano para os espectadores de Fortaleza: uma semana totalmente dedicada a clássicos franceses.
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