quinta-feira, setembro 04, 2014
A HISTÓRIA DA ETERNIDADE
O nosso primeiro festival internacional de cinema, o Farol, começou com o pé direito na noite desta quarta-feira com o filme A HISTÓRIA DA ETERNIDADE (2014), de Camilo Cavalcante, grande vencedor da última edição do Festival de Paulínia, em categorias importantes como filme e atriz (prêmio dividido entre a trinca de atrizes Débora Ingrid, Marcélia Cartaxo e Zezita Matos). E é fácil entender por que o filme foi tão querido por público e crítica.
Há um rigor formal da parte do diretor em seu trabalho de estreia que faz parecer obra de um diretor veterano. A primeira imagem já impressiona: um garoto atira em um pássaro com um estilingue e enquanto a câmera mostra em primeiro plano o animal abatido, vemos um cego tocando sanfona debaixo de uma grande árvore retorcida. Ao fundo, um céu azul e um vasto horizonte que parece não ter fim. Essa solidão do cego só diminui quando entra em cena um cortejo fúnebre.
Um pequeno caixão levado por um grupo surge do lado direito da tela em direção ao lado esquerdo, lembrando aquela frase de Fritz Lang sobre o formato scope só ser bom para mostrar funerais e cobras. Aliás, como é belo o uso da tela larga em A HISTÓRIA DA ETERNIDADE. Passa uma dimensão de grandiosidade não apenas ao filme, mas àquele mundo atemporal criado por Cavalcante.
Dividido em três capítulos, com três curiosos títulos, o filme se encaminha para um desenrolar trágico, mas há momentos de alívio cômico e outros de puro contentamento, especialmente dois estrelados por Irandhir Santos. Seu personagem é um homem deslocado no tempo e no espaço. Mora de favor em uma casa pertencente ao irmão, tentando a todo custo levar adiante a sua proposta de fazer arte naquele lugar em que arte, especialmente a performática, é visto como algo vergonhoso para alguns.
Um desses momentos arrepiantes acontece quando Irandhir coloca uma vitrola e caixas de som para exibir para aquele povo sofrido e que parece viver no fim do mundo uma performance ao som de "Fala", dos Secos & Molhados. Não apenas a música e os gestos do ator são impressionantes, mas a própria câmera entra num estado de êxtase e elevação espiritual através da arte.
A arte sim é mostrada como um elemento libertador e de elevação, não a religião, que perturba com o sentimento de culpa. É o que acontece com a personagem de Zezita Matos (de MÃE E FILHA), que começa a ficar bastante desnorteada quando sente atração sexual pelo próprio neto, recém-chegado de São Paulo. Ao pensar que aquilo é tentação do demônio, só lhe resta maltratar violentamente o próprio corpo.
A violência é um elemento não apenas importante, mas decisivo para os momentos finais e catárticos do filme, quando uma chuva forte chega, não para expurgar os pecados, mas para trazer os simbolismos do sexo e da morte, que na astrologia dividem a mesma casa. Mas até chegar esse momento impactante, o único momento em que Cavalcante usa câmera na mão, com o objetivo de incomodar o espectador, a violência está presente principalmente na intensa repressão da família da jovem vivida por Débora Ingrid.
Prestes a completar 15 anos, a jovem sonha em ver o mar, mas o que recebe diariamente é a figura carrancuda do pai, que leva a família formada por quatro filhos homens e ela com mão de ferro. Sua visão de mundo é estreita e por isso ele reprova o comportamento do irmão (Irandhir), que por sua vez é idolatrado pela jovem sobrinha. Há uma cena dos dois, tio e sobrinha, que é também outro grande momento do filme. Lembra também apresentações teatrais, mas o filme de Camilo absorve o teatro sem nunca deixa de ser (grande) cinema.
Também digno de nota é o eixo da personagem de Marcélia Cartaxo (A HORA DA ESTRELA), que passa do luto a uma possibilidade de encontrar o amor na figura do sanfoneiro cego, que rende alguns momentos de alívio cômico, mas também de muita ternura. É, certamente, o eixo menos afetado pela tragédia entre os três.
A geografia do filme é outro elemento muito valorizado, o que só mostra o quanto A HISTÓRIA DA ETERNIDADE se agiganta na tela grande. Há um plano geral que mostra as casas do núcleo principal daquela pequena cidade, todas juntas, numa sugestão de lugar abandonado por Deus. E o trabalho de encenação dentro desse e de outros espaços é admirável. Como é admirável todo o trabalho de Cavalcante, que vem somar mais uma grande obra produzida em Pernambuco.
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