terça-feira, julho 19, 2011

COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS



Interessante como a obsessão de um cineasta por um projeto faz toda a diferença. Quando Nelson Pereira dos Santos estava doido para fazer VIDAS SECAS (1963), o universo parecia conspirar contra ele, mas, no fim das contas, o filme foi realizado no tempo certo, depois de ele ter feito alguns trabalhos inferiores, mas que funcionaram como um ensaio para a criação de uma obra-prima. Do mesmo modo, COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS (1972) era um projeto antigo de Nelson e que por uma razão ou outra acabava não dando certo. E os filmes que ele fez antes são também ensaios para esta obra marcante do cinema brasileiro que deu muito o que falar.

O diretor utilizou uma locação próxima a Parati, onde havia rodado AZYLLO MUITO LOUCO (1971), para contar de maneira muito mais caprichada e com mais rigor formal a história de um francês que, durante a colonização brasileira, fazia parte de um grupo que procurava se estabelecer em nossas terras. Os franceses fizeram amizade com os índios para que os nativos entrassem em guerra com os portugueses. Arduíno Colasanti é Jean, o francês que é capturado por uma tribo de índios canibais que o confundem com um português e o deixam de molho para ser devidamente comido.

Mas, como era de costume, a tribo espera sete luas para que Jean fique pronto para o abate, e ele tenta nesse tempo se integrar à tribo, aceitando o casamento com uma nativa e participando de caçadas e guerras contra tribos inimigas. Ele até mesmo se despe de suas vestimentas e fica nu junto com os índios. Aliás, essa questão da nudez foi um dos maiores obstáculos para que o filme passasse pela censura aqui no Brasil. Mas, uma vez que passou pela censura, COMO ERA GOSTOSO O MEU FRANCÊS recebeu classificação livre. Contribuiu para que o filme fosse visto como uma obra de importância cultural o fato de ser quase inteiramente falado em idioma tupi, com diálogos traduzidos pelo cineasta e estudioso da língua Humberto Mauro.

As filmagens foram complicadas. Faltou dinheiro durante a produção e Nelson teve que falar com a esposa para que eles vendessem um terreno que tinham em Niterói. Se não fosse por isso, o filme teria ficado parado e talvez não visse mais a luz do dia. Mas tirando esse e outros problemas, as filmagens foram uma maravilha para os atores, que até se acostumaram a andar nus pelo set e ficavam sem roupa em volta da fogueira, conversando. As cenas foram realizadas sempre de dia, pois não havia gerador. Dib Lutfi sempre fazendo milagres com a câmera.

Não posso terminar este texto sem deixar destacada a minha cena preferida, uma próxima do final, quando a "esposa" de Jean (Ana Maria Magalhães) conta a ele, com requintes de crueldade, como será o ritual de sua morte. Essa sequência, além de muito bem conduzida, mostra uma interpretação totalmente incorporada da atriz. E faz com que o espectador, naturalmente identificado com o branco que quer escapar de ser comido pela tribo, sinta-se no mínimo desconfortável. Por mais que Nelson Pereira dos Santos defenda a ideia de que o herói era o índio, anos de identificação com o branco e com a cultura europeia não nos ajudam a aceitar isso.

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