quinta-feira, maio 13, 2010

A VOLTA DO REGRESSO / ENTREVISTA COM O DIRETOR MARCELO V.



Escrever sobre o trabalho de um amigo é sempre complicado. E se por acaso o filme que o amigo dirigiu não lhe agradar? Aí fica-se numa situação constrangedora. Felizmente não foi o caso do curta-metragem A VOLTA DO REGRESSO (2007), de Marcelo V., que eu tive a honra de assistir numa sessão privada com um grupo de amigos na própria casa do diretor, durante minha última visita a São Paulo. E se eu gostei do filme da primeira vez que o vi, gostei mais ainda na revisão, quando percebi melhor o cuidado que o diretor teve com cada tomada, com a fluidez narrativa própria de filmes bem editados, com as tomadas e fotografia caprichadas e um elenco que deve ter facilitado bastante o trabalho do diretor.

Na trama, Marciano (Gustavo Engrácia), jovem aspirante a diretor de cinema, convence um produtor veterano, Ademildo (Ênio Gonçalves, velho conhecido de quem acompanha os filmes de Carlos Reichenbach), a produzir seu primeiro filme. Para a escolha do protagonista, Marciano lembra de um ator esquecido, mas que fazia sucesso na época das pornochanchadas, o Costão (Carlo Mossy, muito à vontade no papel). Costão, que estava na pindaíba e ganhando uns trocados se fantasiando de Papai Noel em shopping center, fica animado para fazer o filme quando dizem ser uma adaptação de "Rei Lear", de Shakespeare. Também no elenco, outro nome memorável do cinema da Boca do Lixo: a musa Kate Hansen, em papel bem pequeno e um pouco fora de sintonia com o restante do elenco.

A VOLTA DO REGRESSO mistura no liquidificador Shakespeare com filmes clássicos de Hollywood (E O VENTO LEVOU é a referência mais explícita) e o cinema produzido no Brasil nos anos 70. Mas, melhor do que ler um texto meu é acompanhar a entrevista que fiz por e-mail com o próprio diretor. Ainda tenho muito o que evoluir como entrevistador, mas espero continuar a fazer isso sempre que possível. É a terceira que publico aqui no blog e considero essas entrevistas ocasiões especiais. Boa leitura!

Como surgiu a ideia de dirigir A VOLTA DO REGRESSO?

Foi uma necessidade, ou seja, a mãe de todas as ideias (boas ou não). A princípio, eu queria apenas assinar o roteiro, que foi escrito em 2003. Pensava em entregar a direção para alguém da minha geração que considerasse especialmente talentoso e acabei nunca conhecendo esse alguém. Sabemos que bons diretores são muito, mas muito raros. Então eu tive de encarar a função, embora não considere que seja minha maior vocação. Sei que tenho capacidade para dirigir, gosto especialmente de decupar e de trabalhar com atores, mas não sinto como diretor a segurança que sinto escrevendo. Ou montando, algo que também nunca tinha pensado em fazer e que só fui experimentar depois que esse roteiro já existia. Hoje me considero mais equilibrado entre essas
três funções, que são muito bem integradas, quase indissociáveis, mas "mon coeur balance", para citar Oswald de Andrade, entre roteiro e montagem.

No Brasil quando se fala de cinema, quase sempre se comenta de questões orçamentárias, de conseguir patrocínio etc. Você soube lidar bem com essas dificuldades? Quais os maiores problemas?

Você disse a verdade: praticamente tudo em torno do cinema (das perguntas nos debates dos festivais às informações publicadas nos ditos "cadernos culturais" dos jornais) gira em torno de dinheiro. Não se fala de arte, mas de "mercado". De quanto custou e de quanto ganhou. Conheci muitos cineastas jovens de cujas bocas insistia em sair a palavra "grana", seguida de um sorriso amarelo; dos filmes, da arte, nada. Acontece que não sou um desses.

Mas houve problemas de falta de verba? Como ficou a questão dos cachês, como do Carlo Mossy e da Kate Hansen? Sei que é uma obra mais modesta e que deve ter rolado muita camaradagem para ela se materializar, mas cinema é uma arte cara, não é? O que foi mais complicado nesse sentido? (Mas se preferir pular o assunto financeiro, a gente passa para a próxima pergunta. :))

Não vou fazer uma desfeita e pular uma pergunta sua nem tenho uma resistência específica em falar sobre o orçamento da produção. Só acho que não é o que mais interessa aos leitores de uma publicação de cinema (mas posso estar errado neste ponto). E também isso abre a compota de "chororô" de qualquer cineasta brasileiro, haja paciência. Mas se você insiste em falar de mazelas, vamos lá.

A falta de uma verba caudalosa obviamente afetou de maneira gigantesca a produção. É um filme amador, em uma bitola mais que obsoleta (16mm), sem nenhum patrocínio (com exceção de doação de refeições, o que foi uma grande economia) e com estrutura deficiente e equipe incompleta (e que trabalhou de favor, o que resolve um problema mas cria muitos outros); tudo isso infelizmente me levou a pensar, no set, muito mais em questões de produção que de direção. Dirigi o filme muito mais no papel e na moviola que no set e isso talvez explique melhor minha primeira resposta.

Também faltou negativo: houve momentos em que os atores me pediram de joelhos para fazer mais um take e a diretora de fotografia fazia "não" com o dedo (olhando desse lado, sobraram "negativos"). A decupagem que eu idealizei não foi realizada, muitos planos que eu queria ter filmado morreram no útero. Não era para ser um filme com tantos master shots e com tantos primeiros takes, mas foi o que deu para fazer.

Então faltou muita verba e o filme se ressente claramente disso. Mas também fiz a decisão de investir no elenco, em especial no Carlo Mossy, que não recebeu cachê como os demais, mas que trouxemos para São Paulo de avião, pagamos uma semana de estadia em hotel 4 estrelas, refeições, etc. Só as despesas com o Mossy comeram uns 40% do orçamento (para você ver como tínhamos pouco dinheiro), mas valeu a pena, porque ele é o ator perfeito para o papel (que não foi escrito para ele, mas é como se fosse).

E uma coisa que me emociona muito é lembrar que ele aceitou fazer este filme uns dez dias depois de ter passado pela maior tragédia de sua vida, a morte do filho caçula, de 4 anos, atropelado por um caminhão. Ou seja, no momento mais trágico, ele deixou a família no Rio para vir filmar com a gente e deu sempre o melhor de si, não criou nenhuma preocupação. E ainda me disse, nas filmagens, que fazer o filme estava ajudando a distraí-lo da dor. Isso não tem preço.

Puxa.. Realmente tocante essa história do Mossy. Ele se identificou com o personagem do filme? Pois ele passa uma naturalidade impressionante.

A ideia de chamá-lo foi da Ana Paul, que me ajudou muito durante todo o casting. Fiz um primeiro contato com o Mossy por e-mail, depois por telefone e finalmente fui ao Rio, dois meses antes da filmagem, para conhecê-lo. Nos encontramos para um chopp com batata frita no famoso Amarelinho da Cinelândia. De cara, ele me disse: "Esse roteiro foi escrito pra mim!"

Mas é claro que as semelhanças entre ele e o Costão param nessa história de "ex-galã de pornochanchada". O Costão não passa disso, enquanto o Mossy, que não renega essa faceta de "pornochanchadeiro" (pelo contrário), tem uma carreira e uma vida bem mais diversificadas (vale muito a pena ler a entrevista que a Andrea Ormond publicou em seu blog; eu cheguei a conversar com o Rubens Ewald Filho sobre um livro com o Mossy para a Coleção Aplauso e a eleição do Serra acabou não deixando isso acontecer, uma pena).

É curioso, porque antes do casting eu fiz um desenho conceitual de cada uma das três personagens principais, e tanto o do Costão (Mossy) quanto o do Ademildo (Ênio Gonçalves, a quem contatei graças ao Carlão) ficaram muito parecidos com o resultado final (a do Marciano era bem diferente e ficou muito melhor quando o Gustavo Engracia topou participar). Lembro de como um dos diretores de arte ficou impressionado com isso, foi como se as personagens saíssem da página e se materializassem. Acho que o elenco é o grande acerto deste filme. Também gosto especialmente da trilha sonora composta pelo Vinicius Calvitti, um músico muito talentoso e também cinéfilo. A meu pedido, ele se inspirou em marchinhas de Carnaval e depois fez umas variações jazzísticas, ficou excelente.

No filme, há algumas referências saudosistas ao cinema que se fazia na Boca do Lixo, inclusive com alguns títulos de filmes bem engraçados para as pornochanchadas. Você acha que o cinema brasileiro produzido naquela época tinha mais a cara do Brasil, como diz o personagem do Gustavo Engracia, do que o que se faz hoje?

Essa não é uma posição minha, mas da personagem, que não é meu alter-ego. Não acho que temos a distância histórica necessária para uma análise mais aprofundada, mas me parece claro que o cinema brasileiro se aburguesou, e não estou falando somente do aumento do preço do ingresso e das salas nos shoppings. O Marciano expõe isso quando cita NELSON FREIRE, o que não funciona como piada (no roteiro eu achava engraçado, mas nas exibições em que estive, ninguém riu), mas funciona como questão (muito complexa) a ser debatida. O país mudou e continua mudando, o cinema acompanha isso, naturalmente. Analisar essas mudanças é importante e considero meu filme um pequeno convite a esta reflexão.

Você falou em saudosismo, mas é importante frisar que o filme não é nem um pouco saudosista. O título A VOLTA DO REGRESSO já é irônico, como todo o resto. É curioso que muita gente venha encarando o curta como uma homenagem ao cinema dos anos 1970 (suponho que pela presença do Mossy, do Ênio e da Kate). Não é homenagem nem esculhambação. É um filme contemporâneo, escrito em 2003 e filmado em 2006. Ele olha para o futuro.

Achei o exemplo de NELSON FREIRE bem feliz. Mas já que você falou em futuro do cinema, aproveito a deixa: como você imagina que será o cinema no futuro, mais especificamente o cinema nacional?

Infelizmente, não vejo muita mudança pela frente. A maioria das pessoas é apegada ao status quo porque não enxerga (ou não quer enxergar) além dele. E não falo só do cinema, isso abarca tudo. Acho importante o Inácio Araújo dizer que é um absurdo o país ter dois ministérios diferentes para a Cultura e a Educação. Vejo que a cultura (como a educação e todo o resto) virou apenas mercado e/ou perpetuadora da política do governo de ocasião; ela deixou de formar as pessoas. E os governantes nem sonham em investir na formação da população; eles são desonestos, covardes e querem massa de manobra. Enquanto esse panorama não mudar (e é só o povo que pode mudar isso _mas como um povo sem educação e sem cultura vai mudar as coisas?), seguiremos atolados nessa vulgaridade bárbara, mesmo que tenhamos ares de novos ricos. A VOLTA DO REGRESSO é um protesto contra essa violência simbólica.

O filme tem algumas tomadas bem elegantes, como a tomada vista de cima da cama do Marciano ou aquela sequência em que vemos dois personagens se falando pelo telefone tendo apenas uma parede montada os separando. No aspecto formal, teve algo que estava nos seus planos e que ficou de fora? O filme era, digamos, mais ambicioso na sua cabeça, antes de encerradas as filmagens?

Sou muito rigoroso de maneira geral e na decupagem em particular. Tudo nesse filme foi pensado e repensado. Fui para o set com um plano de filmagem muito detalhado e completo. Ou seja, para o mal e para o bem, estou mais para Hitchcock que para Altman, nesse sentido.

Mas, como expliquei, não deu para cumprir todo o imaginado por falta de dinheiro, e o resultado final dos enquadramentos e da montagem deixa muito a desejar, na minha opinião _ muita gente já me disse que não é bem assim, mas não consigo me convencer, vejo defeitos mil. Isso é natural.

Entretanto, a intenção sempre foi filmar em internas (apenas duas locações são fora do estúdio), sem planos muito abertos. E também não sou afeito a movimentar a câmera ou a adotar determinado ângulo sem que exista um significado por trás disso. Então, por piores que fossem as condições no set, nenhum plano mais complexo deixou de ser filmado. Aliás, esse plano do telefonema que você citou foi o que mais teve tomadas: cinco! A que está no filme é a quinta.

O que acho que há de ambicioso nesse projeto é o roteiro, saturadíssimo de informação _ o que torna o filme bem abstruso, embora, como planejei, ele funcione em seu nível mais superficial. Gostaria de ser mais ambicioso ainda e atingir uma rara simplicidade em um projeto futuro.

Você tem muitas ideias para o futuro? Projetos engavetados esperando a hora? Títulos de filmes que não existem (ainda), como o Carlão costuma às vezes divulgar?

Tenho tudo isso aos montes. De longas e curtas, sem falar de projetos para livros e teatro, alguns prontos há anos. Mas a ideia de depender de arte para a subsistência não me agrada nem um pouco. E não sou rico nem tenho habilidades administrativas, contábeis, políticas ou antiéticas para ser um produtor independente. Tenho horror à burocracia e ao gosto da maioria, como vou fazer cinema no Brasil? Então, se as coisas não mudarem, a probabilidade de eu voltar a dirigir em um futuro próximo é pequena. Devo voltar a trabalhar como montador neste ano em pelo menos dois curtas, é só o que sei.

Mas para não te deixar apenas com esta resposta chata, vou citar pela primeira vez alguns desses projetos. Um curta que chegou a ter pelo menos um tratamento de roteiro inscrito em edital (argh) se chama "Batatinha". Outro, para o qual fiz uma pesquisa bem abrangente, é "Ciborgues". E tem também o "Às Moscas", que seria uma adaptação de um velho conto meu. O que seria meu primeiro longa não tem título definido, mas posso adiantar que a história se passa em parte em uma fazenda onde há trabalhadores escravos. E um outro é tão fantasioso, mirabolante e estimulante quanto o título indica: "Lampião contra a Coluna Prestes".

Marcelo, muito obrigado pela entrevista. Você teria mais alguma coisa a acrescentar? Algo que eu poderia ter tocado e não perguntei ou comentei?

Há milhões de coisas a serem perguntadas e comentadas, mas tenhamos consideração pelos seus leitores. No momento, gostaria apenas de citar uma frase que ouvi durante o 40º Festival de Brasília, onde A VOLTA DO REGRESSO estreou, que é de uma clareza cristalina para qualquer um com um mínimo de conhecimento de dramaturgia e no entanto muita gente acha paradoxal: "Comédia é coisa séria."

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