sexta-feira, maio 14, 2010

CABRA MARCADO PARA MORRER



Acredito que o meu principal interesse pela obra de Eduardo Coutinho está nas pessoas, na ênfase que ele dá aos entrevistados. Sou um sujeito meio paradoxal - gosto de ficar na minha e tenho poucos (mas ótimos) amigos - mas tenho especial interesse pelo universo particular de cada pessoa. E mesmo sabendo que Coutinho não é exatamente um humanista, que o seu interesse maior pelos entrevistados se dá principalmente a partir do momento em que a câmera começa a registrá-los, é do que ele consegue extrair de interessante dessas pessoas comuns o que mais me encanta. Como CABRA MARCADO PARA MORRER (1985) é um misto de reportagem investigativa com registro de depoimentos, não está entre os meus favoritos do cineasta, ainda que eu reconheça sua importância e suas muitas qualidades.

Há tempos deveria ter visto o filme. Lembro de que nos bons tempos da revista SET, numa eleição para os melhores títulos da década de 1980, CABRA MARCADO PARA MORRER ficou entre os dez. Levando em consideração que a tal revista é de 1989, fazendo as contas, são mais de vinte anos que eu levei para finalmente conferir o filme, ripado de um velho vhs da Globo Vídeo. Até pela sua estrutura, que mistura imagens registradas nos anos 60 e imagens contemporâneas (no caso, os anos 80, com o Brasil ainda em processo de redemocratização), o filme é uma amostra do talento de Coutinho em estado bruto, sem os esmeros que sairíam de suas produções a partir do final dos anos 1990.

CABRA MARCADO PARA MORRER era para ter sido um filme de ficção sobre o assassinato de João Pedro Teixeira em 1962, um líder camponês de uma cidade do interior da Paraíba. Nas filmagens, o jovem Coutinho e sua equipe contariam com a participação da própria viúva de João Pedro interpretando a si mesma. As filmagens foram bruscamente interrompidas em 1964, quando os militares invadiram o local, apreenderam boa parte do material, levaram várias pessoas presas, acusadas de estarem envolvidas com os comunistas. Coutinho conseguiu sair de fininho, salvando boa parte do material bruto das filmagens, quase todas sem áudio.

Dezessete anos depois, o diretor está de volta em busca das pessoas que fizeram parte daquelas filmagens. Elisabeth, a viúva, virou uma espécie de lenda entre os moradores que a conheceram. Ela havia se mudado há anos para outro estado. Coutinho apresenta as imagens do filme inacabado para os envelhecidos e sofridos camponeses, que gostaram de se verem mais moços. Um deles, inclusive, relata a tortura que sofreu dos militares, sendo colocado por várias horas num barril cheio de fezes, sem poder dormir ou mesmo se sentar. Elisabeth Teixeira é encontrada. Ela havia mudado de nome e distribuído os filhos entre os familiares, levando consigo apenas um deles. Sabe aquela frase de Euclides da Cunha para "Os Sertões"? "O sertanejo é, antes de tudo, um forte". Essa frase se aplica perfeitamente à fortaleza que é Elisabeth, uma mulher que sofreu muito, mas que parece forte, apesar de tudo. A dureza da vida no sertão nordestino não deixava muitas escolhas, mas não deixa de ser admirável a força dessa senhora. E ela é a mais explorada por Coutinho no documentário, por razões óbvias. Impressionante como ela ficou feliz com a presença do diretor, que acabou por modificar novamente o curso de sua vida. CABRA MARCADO PARA MORRER é o cinema fazendo história e nos ajudando a entender com a mente e o coração a História do nosso país. O filme é narrado por Ferreira Gullar.

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