quarta-feira, agosto 27, 2008

O DESPERTAR DA BESTA / RITUAL DOS SÁDICOS



Chega a ser impressionante como José Mojica Marins, depois de ter feito tanto sucesso, de ter chegado ao auge de popularidade em 1968 e 1969, ainda assim estar com problemas financeiros. Com o sucesso que fez, imaginava-se que ele estaria rico. Mas não. Para a realização do mais maldito de seus trabalhos, RITUAL DOS SÁDICOS (1969) - que depois mudou o título para O DESPERTAR DA BESTA quando de sua primeira exibição pública em 1983, depois de tantos anos censurado -, ele se utilizou de sobras de negativos, de pedaços de filmes cedidos por Roberto Santos, Carlos Reichenbach, Rogério Sganzerla e outros produtores e colaboradores. Inclusive, na seqüência em cores do filme, no momento de delírio de quatro personagens, ao serem submetidos a uma experiência com LSD tendo em mente a figura do Zé do Caixão, Mojica também teve dificuldade de encontrar negativos em cores para essas cenas, tendo completado algumas partes com negativos em preto e branco tingidos de outras cores, principalmente nas cenas protagonizadas por Ozualdo Candeias.

Um dos trabalhos mais complexos de José Mojica Marins e um dos que mais deixam questionamentos e reflexões sobre a natureza do criador e da criatura e o modo como o personagem engoliu o artista, O DESPERTAR DA BESTA também flagra o momento em que o Zé do Caixão havia se tornado um personagem altamente popular e controverso, com direito a programas de televisão e revistas em quadrinhos. Há, inclusive, uma cena de um programa de tevê em que Mojica é submetido a um intenso interrogatório feito por pessoas que deliberadamente queriam irritar o entrevistado. Depois, entraria um advogado para defender o artista. Esse seria o formato do programa e o primeiro de uma série. Inclusive, um dos que participam do interrogatório é o cantor Adoniran Barbosa.

O filme se inicia com um debate sobre a influência das drogas no comportamento da juventude. Estávamos no final dos anos 60, momento em que a contracultura veio com força, trazendo consigo o sexo, as drogas e o rock and roll. O debate conta com participações de Carlos Reichenbach, Maurice Capovilla, João Callegaro, Jairo Ferreira e Walter C. Portela. Ozualdo Candeias e o sempre presente Mário Lima participam também como atores. A primeira metade do filme acontece num estúdio de televisão, onde o próprio Mojica (interpretando ele mesmo) procura se defender de ataques de moralistas. No meio do debate, são apresentadas pequenas cenas de perversão sexual. A melhor delas é a primeira, onde uma moça faz um strip-tease para um bando de homens feios e com cara de tarados, ao som de um bom rock e, no final, a ela é dado um penico. Das várias perversões, a mais memorável é a do sujeito comendo macarrão e querendo abusar sexualmente de uma moça. Há também a da mulher adúltera que, com a ajuda da droga, fica mais sujeita às tentações da carne, de trair o marido, apesar de durante o ato chorar, olhando para a foto 3x4 do esposo. É uma cena que ficou até bastante moralista, mas ao mesmo tempo, devido ao ridículo da situação, é como se Mojica e Luchetti estivessem tirando sarro do moralismo da época e da dificuldade de ser transgressor naqueles tempos de censura.

A segunda parte é o momento em que pessoas são procuradas para participar de um experimento envolvendo LSD. Com o uso da droga, as pessoas, supostamente, entrariam em contato com a figura do Zé do Caixão, pois das três experiências de espetáculo a que elas se submeteram a que mais impressionou foi a da exibição de ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER (1967) - as outras duas foram uma peça do José Celso Martinez e uma festa de rock psicodélica e libertina. As seqüências do mundo de Zé do Caixão estão em colorido belíssimo, lembrando bastante as cores dos trabalhos de Mario Bava, com seus tons de verde e vermelho bem acentuados. Isso tornou o filme ainda mais psicodélico do que ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER e sua famosa seqüência do inferno gelado. O DESPERTAR DA BESTA é, em sua totalidade, psicodélico. Captura o espírito da época, flertando com as transgressões. Não podia dar outra senão a censura proibir o filme. A cena final, com Mojica dizendo "corta", chega a ser ambígua. Estaria ele dando uma indireta para os censores?

Quando de sua exibição no Rio-Cine Festival de 1986, R.F. Luchetti levou o prêmio de melhor roteiro e Mojica curiosamente levou o prêmio de melhor ator, apesar de aparecer pouco. Em O DESPERTAR DA BESTA, muda o dublador de Mojica. Sai Laércio Laurelli dos três primeiros filmes, entra Araken Saldanha, que tem uma voz bem mais parecida com a do cineasta/ator. Mas preferia o primeiro dublador.

Entre os extras do dvd, o grande destaque é FOGO-FÁTUO (1980), de Goffredo Telles Neto, documentário em curta-metragem homenageando Mojica. Interessante ver como as pessoas são sugestionáveis quando participam do workshop do diretor, que leva uma multidão à loucura, fazendo-as imaginar que estão em perigo dentro de um avião. Mojica também contribui para mistificar ainda mais a sua figura, contando de quando viu um fogo-fátuo, atribuindo a isso o fato de ele ter se tornado um cineasta de filmes de horror. Depois, há um depoimento de um crítico de arte e físico a favor do cinema do diretor.

Entre as entrevistas, na do próprio diretor, além de ele contar dos pedaços de negativo que ele teve que se utilizar para a realização do filme, ele dá ênfase no assunto dos aspectos sombrios que todos têm. Cotrim, o "homem do macarrão" do filme, conta das circunstâncias em que conheceu Mojica, durante uma averiguação de rotina (ele era policial do Esquadrão da Morte na época) para verificar se havia drogas no set. No fim das contas, Mojica, bom de papo que era, acabou convidando-o para fazer o papel que seria de Jô Soares, contracenando com a Ítala Nandi. O cineasta Ozualdo Candeias é entrevistado num bar do bairro da Boca do Lixo, com pôsteres do Zé do Caixão na parede, e fala de sua relação de longos anos com Mojica, antes mesmo de ele ter criado o Zé do Caixão, no final da década de 50. Eugenio Puppo, o homem que me entregou o Troféu Quepe do Comodoro na cidade de São Miguel do Gostoso - é assim que eu vou me lembrar dele sempre - fala principalmente sobre o resgate da cópia integral de RITUAL DOS SÁDICOS que a Censura, apesar de ter impedido a exibição do filme, não tocou um dedo ou cortou uma cena sequer. Juan Espeche fala de sua relação com o Mojica, que não foi de natureza cinematográfica. Ele era uma espécie de organizador de uma dessas câmaras de horror de parque de diversões, tendo convidado o Zé do Caixão pra participar. R. F. Luchetti conta de sua admiração pelo modo como Mojica soube aproveitar o pouco espaço que ele tinha para filmar, num pequeno apartamento, e sua capacidade de improvisação. O roteiro de Luchetti para esse filme foi só um guia. Mojica teve toda a liberdade para dar asas à sua imaginação nesse que é, sem dúvida, o seu trabalho mais delirante.

Em relação aos demais extras, na seção "Sons da Noite" tem um conto fraco que Mojica narrou para a 89 FM, chamado "Vermes", além do lado B do compacto simples que saiu na época, com Mojica interpretando "Castelo de Horrores", uma marchinha de carnaval com um refrão grudento e que deve ter feito algum sucesso. Na seção "Especial", há uma visita ao arquivo nacional, onde estão guardados todos os filmes censurados na época da ditadura e onde podemos ver os rolos originais de RITUAL DOS SÁDICOS. Há também trechos de um workshop que ele realizou no Rio de Janeiro, que é interessante para ver o seu método de trabalho de interpretação, através de sugestões mentais, principalmente.

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