quinta-feira, maio 17, 2007

RASTROS DE ÓDIO (The Searchers)



Quase tão bom quanto ver RASTROS DE ÓDIO (1956) é ver o pequeno documentário de cerca de meia hora de duração que vem no segundo disco da edição especial do filme - tem outro documentário de mesma duração no dvd, mas esse primeiro é bem melhor. Como é bom ver Martin Scorsese falando de cinema com tanto entusiasmo e paixão. Para ele, John Ford representa o que de melhor há na sétima arte. Algo que me chamou bastante a atenção foi o fato de Scorsese ter dito que o Vistavision, o formato usado na produção desse filme, foi o melhor formato já utilizado no cinema. Ele conta que nunca o cinema foi tão bonito quanto naquela época. Havia uma maior nitidez de imagem e uma maior profundidade de campo. Infelizmente não temos sequer chance de um dia poder conferir essa qualidade, já que ver o filme no cinema, só se for no tradicional 35 mm. E olhe lá.

Impressionante também, ao assistir RASTROS DE ÓDIO, é notar a semelhança desse filme com os últimos de Clint Eastwood, em especial, A CONQUISTA DA HONRA. Já tinha reparado essa semelhança também com SANGUE DE HERÓIS (1948), mas em RASTROS DE ÓDIO essa semelhança se extende até em planos-chave, como aquele em que John Wayne entra na caverna para ver o corpo de sua cunhada, assassinada pelos comanches, bem como a discussão sobre o rascismo e o índio americano. Já a carta lida por Vera Miles lembra diversos momentos de CARTAS DE IWO JIMA. Há também a economia de movimentos de câmera, que também se tornou uma marca do cinema de Clint. E no caso de RASTROS DE ÓDIO, há também o pouco uso de closes. Tanto é que quando os closes surgem, eles ganham um significado todo especial, como naquele zoom no rosto de John Wayne, quando ele fica possesso de raiva com os índios. Quem também participa, além de Scorsese, desse mini-documentário é Curtis Hanson e John Millius, dois cineastas estudiosos do cinema de John Ford.

RASTROS DE ÓDIO é um dos filmes mais especiais de Ford. Para muitos, é a sua obra-prima maior. John Wayne, tantas vezes subestimado como ator, tem talvez a sua maior interpretação nesse trabalho. Ele levou muito a sério o papel. O amigo Harry Carrey Jr. contou que Wayne não brincava mais como antes durante as filmagens. Ele se entregou de verdade ao papel de Ethan Edwards, o sombrio personagem cheio de amargura. Seu ódio contra os índios é tanto que ele é capaz de tirar os escalpos de seus inimigos e de mandar bala nos olhos dos índios mortos. Ele podia não acreditar no que eles acreditavam, mas sua intenção maior era ferir os nativos através de suas crenças. Ethan odeia os índios ou qualquer um que tenha qualquer relação com eles. Incluindo o seu sobrinho Martin (Jeffrey Hunter), por ter sangue cherokee, ou a sua sobrinha raptada Debbie, pela possibilidade de ela ter feito sexo com Scar (Henry Brandon), o líder indígena que liderou a chacina de sua família.

A questão hoje em dia de que se Debbie (Natalie Wood) fez sexo ou não com Scar pode parecer irrelevante, mas na época, o fato de só pensar nisso já era no mínimo bastante incômodo. Talvez se tentarmos nos colocar um pouco naquele tempo, a fim de procurarmos entender a moral e os costumes daquela época, talvez possamos nos aproximar um pouco mais da personalidade complexa e paradoxal de Ethan Edwards. No final, ele até consegue vencer o ódio, o monstro interior que o consome, já que ele acaba deixando a sua herança para o seu sobrinho mestiço e deixando escapar da morte Debbie, talvez por ela se parecer demais com a mãe.

RASTROS DE ÓDIO tem algumas sutilezas e segredos que vão se revelando aos poucos através de novas revisões, como o fato de que Ethan e sua cunhada serem apaixonados. E quem sabe, Debbie era até sua filha. Isso explicaria um pouco a sua profunda solidão e amargura. A porta se fechando para ele no final do filme é um bom exemplo disso. Ethan prefere não incomodar a felicidade recém-conquistada daquela família e curtir sozinho a sua solidão, na vastidão daquele deserto, com o Monument Valley ao fundo. Ao menos algo bonito ele podia contemplar.

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