domingo, julho 17, 2022

SCARFACE



No ano passado, comecei minha peregrinação pela obra de Brian De Palma. E estava indo tudo muito bem, quando começaram as aulas presenciais, meu tempo disponível diminuiu e o filme seguinte para revisão era SCARFACE (1983), que eu tinha visto dez anos atrás no DVD duplo da Universal. O último De Palma que havia visto, a obra-prima UM TIRO NA NOITE (1981), foi em outubro. Ou seja, eu cheguei a interromper o que estava indo muito bem, com direito à leitura do ótimo De Palma’s Split-Screen, de Douglas Keesey, por uma cisma com uma obra que é tida por muitos como um dos melhores trabalhos do realizador.

O filme mais cheio de excessos de Brian De Palma tem momentos brilhantes, mas segue sendo aquela obra que, ao contrário de tantas outras do realizador, não me deixa com um sorriso no rosto durante sua metragem. De todo modo, há razões para isso, já que o que temos é a tragédia de um homem com pinta de psicopata em sua escalada para um império do tráfico de cocaína em Miami, no início dos anos 1980. Há muito de Oliver Stone, o autor do roteiro, e talvez isso tenha prejudicado um pouco para mim, que senti falta da mão do De Palma mais virtuoso e maneirista.

O esqueleto do SCARFACE de 1932 está presente principalmente na relação de ciúme doentio de Tony Montana com a irmã mais nova. Al Pacino está vários tons acima em sua versão mais cheirada de um Michael Corleone. Falo isso reconhecendo a grandeza do ator, que se entrega ao personagem de tal forma que por vezes esquecemos que é o Pacino que está ali, mais bruto, mais inconsequente, mais sanguinário. Há uma cena que muito me lembrou um momento de DUBLÊ DE CORPO (1984), que é a cena da motoserra, já no começo do filme. No mais, a própria abundância da produção (inclusive em sua duração) é coerente com a imagem de seu anti-herói.

Um dos motivos para De Palma sair um pouco de suas obras mais pessoais foi estar cansado de mostrar tanto de si em seus filmes. Ele chegou a dizer em entrevista para a revista Mr. Showbizz: “Você fica cansado de suas próprias obsessões, das traições, do voyeurismo, da sexualidade distorcida. Eu fiz um monte de filmes como esses, então você fica feliz em sair disso com esses gângsteres cubanos. Te dá um pouco de alívio.” Mas havia um outro motivo para a mudança brusca de UM TIRO NA NOITE para SCARFACE: o fracasso comercial do anterior.

O que é uma pena, pois quando vemos os filmes em ordem (ou mesmo fora de ordem), sem saber se houve um sucesso ou fracasso comercial, o que mais importa é o sucesso artístico. E isso eu vejo muito mais em UM TIRO NA NOITE e nas obras mais hitchcockianas que tanta gente pegou no pé, chamando o diretor de plageador ou coisa parecida. Então, um tanto frustrado, De Palma estava disposto a fazer um filme pelo dinheiro. Tanto que ele quase chegou a dirigir FLASHDANCE!

Ainda assim, e apesar do roteiro ter sido escrito por Stone, há muito de Brian De Palma em SCARFACE. Inclusive há pano para manga para o chamarem novamente de misógino. Michelle Pfeiffer se sentiu muito mal durante as filmagens, pois, de propósito, De Palma a deixava de lado, para que ela construísse uma personagem fragilizada e hostilizada em um mundo de homens grosseiros. De certa forma, funcionou muito no resultado, embora hoje em dia esse tipo de recurso seja considerado desumano. A frieza do diretor diante da atriz era percebida por todos no set.

A relação de Tony Montana (Pacino) com Elvira (Pfeiffer) na trama, mesmo quando ele a toma para si, depois de matar o ex-chefe (Robert Loggia), é bastante dessexualizada. Mas isso é natural quando se tem um homem que só quer saber do dinheiro que ganha com as drogas, da cocaína que consome aos quilos, e dos inimigos que o cercam por todos os lados, sejam eles traficantes rivais, a polícia ou os colombianos. Por isso a cena em que Elvira reclama do marido na frente do amigo Manny (Steven Bauer) é bem representativa dessa situação. E também uma das melhores cenas de Pfeiffer, que se defende dos maus tratos cotidianos de maneira também agressiva.

Coincidência ou não, à medida que o casamento de Montana e Elvira se desintegrava, o casamento de Brian De Palma com Nancy Allen também desmoronava. Eles já estavam divorciados na época do lançamento de SCARFACE nos cinemas. O que é uma pena, pois adoro a Nancy nos quatro filmes que ela fez com o diretor.

Sobre relações De Palma/Hitchcock, uma cena que costuma trazer uma obra de Hitchcock à tona é a cena da bomba no carro. Ao contrário da bomba que explode em SABOTAGEM, do mestre do suspense, De Palma faz aquilo que Hitchcock se arrependeu de ter feito e traz um senso de moral para Montana, que impede que um carro com uma mulher e uma criança seja explodido. Em vez disso, ele prefere atirar no colombiano e prejudicar a si e a seus negócios.

No fim das contas, SCARFACE não foi o sucesso pretendido por De Palma e pelo estúdio. E nem pela crítica, durante um bom tempo. Até Pauline Kael, fã do De Palma, meio que massacrou o filme. SCARFACE começou a ter um sucesso maior nas videolocadoras e hoje em dia também é visto como uma obra de referência e culto. No livro 1001 Filmes para Ver Antes de Morrer, SCARFACE é um dos três títulos do realizador que é incluído, junto com CARRIE, A ESTRANHA (1976) e OS INTOCÁVEIS (1987). 

+ DOIS FILMES

QUEM MATOU ROSEMARY? (The Prowler)

É interessante começar a ver um número maior de slashers e perceber qualidades que talvez não perceberíamos com olhos menos treinados. Este QUEM MATOU ROSEMARY?(1981) tem uma seriedade e uma atmosfera que o tornam mais interessante e mais valioso do que a maioria dos exemplares. Além do mais, os efeitos especiais super-realistas de Tom Savini fazem uma diferença enorme nas cenas das mortes, no seu caráter mais gráfico - a cena da piscina é impressionante. No mais, não me atraiu tanto a figura do assassino, a não ser pelo visual. A história dele me pareceu frouxa (a não ser que tenha algum simbolismo trazido da Guerra do Vietnã), sendo mais uma desculpa para a criação de maníaco desconhecido que vem atacando a cidadezinha durante a festa de graduação de uma turma de estudantes. O diretor, Joseph Zito, é mais conhecido por filmes como SEXTA-FEIRA 13 – PARTE 4: O CAPÍTULO FINAL (1984), BRADDOCK – O SUPER-COMANDO (1984) e INVASÃO U.S.A. (1985). QUEM MATOU ROSEMARY? está presente no box Slashers VI.

SANGUE NA LUA (Blood on the Moon)

Com o meu interesse de ver mais westerns categorizados como noir, chego a este belo exemplar dirigido por um dos artesãos mais celebrados de Hollywood. Robert Wise, na época, fazia tanto filmes de terror, suspense, quanto westerns e policiais. SANGUE NA LUA (1948) pega um pouco desta salada de gênero que fazia parte do espírito da época, tem o charme de Robert Mitchum, uma mocinha encantadora (Barbara Bel Geddes), um antagonista muito bom (Robert Preston) e uma trama inicialmente complicada envolvendo uma rixa entre fazendeiros e rancheiros, sendo que o grupo dos rancheiros estava sendo chefiada por um sujeito inescrupuloso disposto a matar, roubar e até usar a filha do fazendeiro para trair o pai. Há uma cena em especial, da luta entre Mitchum e Preston no bar, que é bem sombria, mas o melhor momento fica no final, quando o vilão e mais dois homens cercam a casa do personagem de Walter Brennan. Aliás, difícil não ligar isso a ONDE COMEÇA O INFERNO, de Howard Hawks, não só pela presença de Brennan, mas também pelas circunstâncias. O "quentinho no coração" se dá pelo romance do casal principal. Outros dois momentos fortes do filme envolvem estouros de boiadas, justo no mesmo ano em que RIO VERMELHO, também do Hawks, foi lançado, trazendo o mais famoso estouro de boiada da história do cinema. Coincidência ou algo recorrente no gênero? Filme visto no box Filme Noir - Robert Mitchum.

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