domingo, julho 24, 2022

HARAKIRI (Seppuku)



Eu podia estar na praia pegando uma corzinha – esse aspecto de vampiro que não se alimenta de sangue há tempos já está me incomodando –, mas aqui estou eu, na sombra, tentando fazer algo que me dá muito prazer, que é deixar registradas minhas impressões sobre um filme de que gostuei muito. Atualmente estou fazendo um curso muito bom sobre cinema samurai, que está me dando um empurrãozinho para conhecer certos filmes que até então eu não havia me entusiasmado a ver, ou sequer tinha ouvido falar, na verdade. E mal sabia eu o quanto estava perdendo, especialmente quando vi o glorioso HARAKIRI (1962), de Masaki Kobayashi.

Ao ver esta obra imensa eu fiquei até um tanto revoltado com o fato de esse filme permanecer apenas dentro de um nicho ao invés de estar presente nos cânones mais populares, em todas as listas de melhores obras cinematográficas de todos os tempos. É possivelmente o melhor filme sobre samurais já realizado, assim como um primor na construção plástica, que impressiona logo de início, valorizando cada elemento de cena na janela scope em preto e branco, e muitas vezes parecendo uma verdadeira pintura em movimento, especialmente em uma das cenas de duelo de espada ao ar livre. Além do mais, há também um dos melhores usos de flashback da história do cinema, rivalizando com obras como CIDADÃO KANE, de Orson Welles, e ASSIM ESTAVA ESCRITO, de Vincente Minnelli.

E como a construção de flashback é um mérito tanto da direção, quanto do roteiro e da montagem, vale lembrar que o roteirista de HARAKIRI é Shinobu Hashimoto, que trabalhou com Akira Kurosawa em RASHOMON (1950), VIVER (1952), OS SETE SAMURAIS (1954), ANATOMIA DO MEDO (1955) e A FORTALEZA ESCONDIDA (1958). Inclusive, dois filmes roteirizados por ele estão no meu radar para ver ainda nesta semana: A ESPADA DA MALDIÇÃO (1966), de Kihachi Okamoto, e REBELIÃO (1967), novamente do mestre Masaki Kobayashi.

Acho interessante perceber que entre HARAKIRI e REBELIÃO, Kobayashi havia realizado um filme de horror bastante festejado, KWAIDAN – AS QUATRO FACES DO MEDO (1964), e vejo isso como uma ligação muito natural, se pensarmos no horror e no maravilhamento que HARAKIRI produz. Afinal, o seu revolucionário filme anti-samurai consegue ser também um filme de horror, especialmente quando conta a tragédia do jovem samurai empobrecido, que é obrigado a cometer seppuku com uma espada de bambu. Tal cena é de uma crueldade tão grande, que eu não consigo sequer lembrar de outro caso parecido em filme algum. Inclusive, há relatos de pessoas que saíram da sala de cinema por não aguentar ver tal cena. 

A história intrincada e muito envolvente começa quando o protagonista Hanshiro Tsugumo (Tatsuya Nakadai) adentra aquele espaço luxuoso do clã que centraliza a riqueza da região com a proposta de administrar um seppuku. Dentro desse lugar, ele ouvirá a história de um jovem samurai pobre que também aparecera lá com a mesma proposta, e depois ele mesmo será o responsável por dominar a arte da narrativa, contando uma história que terá não apenas uma ligação com a anterior, mas que trará uma série de reviravoltas e surpresas para o espectador e para todos aqueles samurais de alto poder aquisitivo.

Além da própria linha da trama, que vai sendo tecida sem pressa e cheia de suspense, Tsugumo, o protagonista, e o próprio Kobayashi em sua proposta de revitalização e desconstrução das velhas tradições, derruba as máscaras da hipocrisia das tradições, chegando a dizer que o código de honra do bushido é uma farsa. Imagino que isso deve ter deixado certos grupos mais conservadores do Japão bem incomodados. Além disso, o filme ainda deixa escancarada a questão de que a história é contada pelos vencedores, que adulteram os fatos e trazem a glória para si mesmos.

Nada como os anos 1960, essa década fantástica que trouxe a contracultura para o nível mais elevado, para que filmes como HARAKIRI pudessem ser criados e vistos. Claro que nada disso seria possível se o Japão vencesse a guerra e o militarismo autoritário ainda imperasse no país e possivelmente no mundo. O pós-guerra, portanto, possibilitou que as artes alçassem voos inimagináveis, inclusive com o surgimento dos novos cinemas de tendência mais esquerdista em praticamente todo o globo.

+ DOIS FILMES

HUMANIDADE E BALÕES DE PAPEL (Ninjô Kami Fûsen)

O cinema japonês na década de 1930 já era um dos melhores do mundo. Basta lembrarmos que nesse período Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi já faziam grandes obras. Não conhecia nem de ouvir falar o trabalho de Sadao Yamanaka e estou entrando em contato por ocasião do curso sobre cinema samurai. Fiquei bem curioso para conhecer pelo menos um dos trabalhos desse que é conhecido como o Jean Vigo do Japão – por ser da década de 1930 e por ter morrido bem jovem (no caso dele, aos 28 anos de idade, na guerra contra a China). HUMANIDADE E BALÕES DE PAPEL (1937), de Sadao Yamanaka, traz uma história bem melancólica. Os dois personagens principais são um ronin precisando de trabalho e seu vizinho, um cabeleireiro que tenta a sorte em mesas de apostas. A história se passa num espaço bem pobre de Edo, que é como era chamada Tóquio nessa época (séc. XVIII). O filme já começa com a descoberta do corpo de um homem que cometera suicídio. Pela conversa dos vizinhos, ficamos sabendo que aquele não é um caso isolado. Pelo modo como termina o filme, passamos a compreender um pouco as questões envolvendo um tipo de honra muito particular da sociedade japonesa. O personagem do ronin é um dos mais honrados da história, mas justamente por causa dessa honra, ele mente para a esposa, provavelmente por sentir-se humilhado, já que não consegue ter uma conversa com o senhorio que fora o mestre de seu falecido pai. A situação do sequestro de uma moça, no terço final, torna a trama mais tensa e mais desesperançada. Filme presente no box Cinema Samurai 3.

OS HOMENS QUE PISARAM NA CAUDA DO TIGRE (Tora no O wo Fumu Otokotachi)

O fato de ter apenas 59 minutos de duração não deixa de ser um convite para que possamos ver este que é um dos primeiros filmes dirigidos por Akira Kurosawa, e que acabou demorando para ser lançado no Japão, pois os americanos suspeitavam se tratar de uma homenagem ao espírito de lealdade ao Japão feudal. De certa forma, pode ser mesmo, tanto que OS HOMENS QUE PISARAM NA CAUDA DO TIGRE (1945/1952) foi um filme de encomenda do governo japonês, mas há dúvidas que até hoje ficam no ar, como a figura do capitão do acampamento que estava ali para impedir que os samurais disfarçados de monges passassem. A cena mais lenta do filme é a mais interessante, que é a da tentativa do líder dos samurais de persuadir os seus inimigos de que eles seriam autênticos monges budistas. A figura do carregador desajeitado transforma o filme numa comédia, com frequência. Ele é como uma versão japonesa do Jerry Lewis. E também é talvez o que mais se aproxima do espectador médio. Gosto de imaginar que o "prêmio" que os samurais receberam veio mais de sua performance artística do que do fato de eles mentirem bem. Pode ser a mesma coisa: talento é para quem tem. Filme visto no box Cinema Samurai 3.

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