terça-feira, março 02, 2021
LA FLOR
Foi então que eu percebi que eu não queria um filme: eu queria fazer centenas de filmes com elas! Eu queria que "filmes com elas" se tornasse um gênero próprio. Foi então que tive a ideia de fazer um filme que seria todos os filmes.
(Mariano Llinás, em entrevista à revista CinemaScope)
Achei linda essa declaração de Llinás acima, ao falar não apenas da razão de ser de sua obra-prima LA FLOR (2018), mas do quanto ele queria trabalhar com as quatro atrizes, que não eram muito famosas na época do início das filmagens, em 2008. Sim, o filme demorou cerca de 10 anos para ficar pronto. Mas isso é apenas mais um dos fatos extraordinários acerca deste trabalho. E voltando à paixão por suas atrizes, sim, isso é sentido do lado de cá da tela, até porque nos apaixonamos por elas também.
Llinás havia visto as quatro no teatro e simplesmente quis fazer algo com elas. Só que um filme só não era o bastante. Havia muitas ideias, muitos desejos, muitas imagens em sua mente. Por isso LA FLOR se tornou esse objeto estranho e singular, em que temos seis filmes em um ao longo de quase 14 horas. E são filmes com durações bem distintas, sendo que um deles tem cerca de seis horas, outros de duração mais “comercial” e os últimos são algo próximos de curtas-metragens. E são todos eles exercícios com diferentes gêneros cinematográficos.
Quanto às atrizes, são elas: Laura Paredes, que eu havia visto em LA PRINCESA DE FRANCIA, de Matías Piñero, mas em papel pequeno, nem lembrava mais dela; Elisa Carricajo, que também esteve no referido filme de Piñero, e que vi recentemente nos cinemas em UM CRIME EM COMUM, de Francisco Márquez - fiquei impressionado com sua performance; Pilar Gamboa, que havia visto em O FUTURO ADIANTE, de Constanza Novick, também nos cinemas, há um par de anos; e Valeria Correa, cujo trabalho me era até então completamente desconhecido. Nem preciso dizer que surgiu um interesse grande em vê-las mais vezes, assim como surgiu um interesse maior pelo cinema argentino, que tão pouco chega a nosso circuito.
Depois de uma espirituosa explicação e apresentação do filme pelo próprio Llinás logo no início, adentramos o primeiro episódio, que é um filme de horror B sobre uma múmia que aterroriza um grupo de arqueólogos. O episódio em si não tem aquele clima de susto, passa sempre aquela impressão de que "estamos vendo um filme" ou de uma brincadeira que não se leva muito a sério. Mas isso marcou o início de uma das mais bonitas parcerias entre cineasta e elenco que eu já vi.
Esse primeiro filme/episódio não me empolgou tanto assim, mas o segundo foi uma experiência extraordinária. Trata-se de um musical com toques de suspense hitchcockiano. Mas não foi nem o suspense que me deixou em êxtase - embora tenha achado esse aspecto de uma elegância impressionante. O que mais me ganhou foram as canções belíssimas e como elas e a história trazem para o filme um melodrama de cores bem latinas. Foi quando percebi que também estava me apaixonando pela sonoridade da língua espanhola, seja nas canções, seja na voz off que se faz bastante presente nessa história de corações feridos e construções de lendas e narrativas.
Aliás, é impressionante como o cineasta tem um apreço por narrativas clássicas, por mais que seu filme se aproxime de algo mais moderno ou de vanguarda. No fundo, o que vemos e ouvimos é herdeiro do cinema dos mestres. O próprio diretor citou na já citada entrevista sua paixão por diretores como Jean Renoir, Alfred Hitchcock e Roberto Rossellini. Ou seja, LA FLOR é uma ode à narrativa clássica, muitas vezes uma narrativa que muito se assemelha à do romance, seja pela trajetória mais longa, seja pelo prazer com que a palavra em si é usada.
Por mais que em alguns momentos o uso da narração em voice-over pareça uma opção criativa para disfarçar um orçamento modesto, ela funciona também para dar um ar mais amoroso ao filme, principalmente no terceiro episódio, o thriller de espionagem na guerra fria, em que as quatro mulheres são espiãs prestes a encontrar um grupo inimigo em uma área rural da América do Sul, enquanto carregam um homem como refém. Esse terceiro episódio, até pela sua maior metragem, é o que mais explora a força das quatro atrizes. Os flashbacks das histórias de vida de cada uma das quatro engrandecem e muito o filme, ao acentuar suas histórias sofridas, passadas em diferentes partes do globo. Esse terceiro episódio, falado em várias línguas, levou quase seis anos para ficar pronto.
Daí a solução para o quarto episódio ser ainda mais inventiva. O diretor não sabia de fato o que iria fazer, as ideias foram surgindo à medida que ele ia trabalhando com sua equipe filmando árvores. Curiosamente, ele teve uma ideia de um filme que já havia sido feito, FIM DOS TEMPOS, de M. Night Shyamalan, sobre as árvores se voltando contra a raça humana. Seus amigos avisaram que essa ideia já havia sido usada e ele então desistiu. E que bom que desistiu, pois esse quarto episódio tem tanta invenção e surpresas que é difícil não se pegar sorrindo enquanto se assiste. Seja pelos jogos de metalinguagem, seja pela ideia genial de fazer um filme de bruxas.
Nesse quarto episódio as quatro atrizes aparecem pouco, mas aquele final com elas sendo filmadas de maneira íntima e amorosa é tão bonito que a declaração de amor se torna cada vez mais tocante e explícita. Sem falar que, mesmo estando ausentes, nesse filme de quase quatro horas, elas meio que têm seus espíritos sempre presentes e rondando toda parte, como se fossem de fato forças sobrenaturais.
Terminar o projeto com uma homenagem (ou um roubo, como o diretor prefere dizer) a UM DIA NO CAMPO, de Jean Renoir, e depois, com o sexto episódio, fazendo uma espécie de filme mudo emulando pinturas impressionistas, me deixou sentindo falta das vozes, principalmente das vozes das atrizes. Mas foi muito fácil aceitar as opções do cineasta e terminar essa jornada com um forte sentimento de gratidão.
Agradecimentos à Paula por acompanhar comigo essa obra tão desafiadora quanto deliciosa.
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