domingo, março 07, 2021
ENORME (Énorme)
Assisti a ENORME (2019) em janeiro passado e demorei muito tempo para escrever a respeito, mas vou tentar agora recorrer um pouco à minha memória, pois considero o filme de Sophie Letourneur um dos mais interessantes lançamentos deste ano, por mais que seja uma obra problemática do ponto de vista moral. O filme chamou a atenção do círculo de cinéfilos quando apareceu no top 10 da Cahiers du Cinéma do ano passado (em nono lugar). O registro de comédia grotesca me fez lembrar ROCK'N ROLL - POR TRÁS DA FAMA, de Guillaume Canet. Ou seja, ao que parece os franceses têm um senso de humor bem diverso.
Foi o segundo filme em um intervalo de uma semana que tratou do assunto gravidez/parto que eu vi - o outro foi PIECES OF A WOMAN, de Kornél Mundruczó, totalmente distinto em tom, registro, intenção etc. O registro de ENORME é o de comédia escrachada, mas depois há uma mistura com momentos dramáticos muito bonitos e também um flerte com o documentário, o que o torna ainda mais bizarro, um objeto estranho, singular.
É estranho, pois é um filme que se assume fantasioso em determinado momento e também por nos trazer situações não exatamente confortáveis. Somos apresentados a uma pianista de sucesso, Claire (Marina Foïs), que é totalmente focada em seu trabalho, não encontra tempo para pensar nem mesmo na própria alimentação ou em outros "detalhes" da vida normal. Para isso ela tem como assistente o próprio marido, Frédéric (Jonathan Cohen), que faz tudo para ela: agenda seus voos e espetáculos, organiza seus remédios, faz as compras, e, quando vê que ela está estressada oferece a ela sexo oral. Até mesmo no dia do aniversário dele, que ela esquece, ele dá como solução ele mesmo comprar o próprio presente para que ela não tenha nenhum trabalho.
Nesse sentido, o que vemos até então é a visão de uma mulher um tanto egoísta, de certa forma, o que aliás é comum de se ver em grandes artistas, aqueles que podem se dar ao luxo de focar suas vidas inteiramente em seu trabalho. As coisas mudam para Frédéric quando ele ajuda uma mulher a dar à luz em um voo. Isso desperta seu “instinto paternal” e ele acredita que precisa ter um filho. Mas o que fazer se a mulher não quer? Ele faz, então, uma ação abominável: troca os anticoncepcionais dela por comprimidos com açúcar, para que, assim, ela possa engravidar, contra a própria vontade. Detalhe: a ideia partiu da mãe de Frédéric. E assim entramos em um território altamente espinhoso, que é o território da violação do corpo da mulher. Como se não bastasse, a diretora e seu corroteirista optam por um exagero no modo como a barriga da mulher cresce, de maneira monstruosa. Sem dúvida, um tipo de humor bem estranho.
As coisas ficam ainda mais surreais quando o filme dá uma guinada e se transforma também em um drama sobre direitos, especialmente quando a mulher descobre que o marido mentiu para ela e agiu contra sua vontade. O reconhecimento (ou não) do ato imoral por parte de Frédéric e a crise no casamento levam o filme para caminhos inesperados, que também se misturam com cenas de especialistas reais da medicina nos consultórios e depois a uma longa cena de parto, que muito impressiona.
Ou seja, temos aqui uma obra controversa, especialmente para os dias de hoje, que brinca com a troca de papéis de marido e esposa, como se fosse uma comédia dos anos 1980 ou 90, que tem uma ambiguidade torta no modo como vemos os personagens, mas que de certa forma é um convite à reflexão sobre limites, maternidade e individualidade.
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