sábado, fevereiro 13, 2021

AMOR ESTRANHO AMOR



Não lembro exatamente em que ano vi AMOR ESTRANHO AMOR (1982) no saudoso Cine Diogo, mas, a julgar pela informação de que foi em 1991 que Xuxa Meneghel proibiu a comercialização em VHS, imagino que tenha sido nos primeiros anos dessa década.

Na época que se dispôs a fazer o filme, Xuxa não sabia que se tornaria apresentadora de programa infantil. Ela era namorada do Pelé, que por sua vez era amigo do produtor Aníbal Massaini Neto, e, como Walter Hugo Khouri era um cineasta que valorizava muito as atrizes que eram elevadas a um posto de sucesso sempre que apareciam em seus filmes, a chance de trabalhar com o cineasta parecia uma oportunidade de ouro. Mesmo sendo um filme que deu uma dor de cabeça para a futura apresentadora, que pagou 60 mil dólares anuais à Cinearte Produções, durante os anos de 1991 a 2018, para sua interdição, não dá para negar que trata-se da obra cinematográfica mais importante e bonita que ela já fez.

Surpreendi-me positivamente com a revisão da obra agora. Costumava considerar o filme um trabalho menor do cineasta e agora vejo que me equivoquei. Equipará-lo a outras obras do diretor é uma tarefa ingrata, já que estamos falando de alguém que fez grandes filmes através de cinco décadas. Então talvez seja melhor olhar para AMOR ESTRANHO AMOR como uma obra-solo, por mais que seja difícil não fazer referência a outros tantos títulos do realizador, especialmente os que apresentam o alter-ego Marcelo.

Aqui o nome do protagonista não é Marcelo; é Hugo, representado pelo menino Marcelo Ribeiro e pelo idoso Walter Forster, que comparece como uma espécie de fantasma vindo do futuro para relembrar o seu breve período naquela mansão que funcionava como um prostíbulo de luxo, onde sua mãe trabalhava e morava. A mãe, vivida por Vera Fischer, chama-se Ana, nome frequentemente usado por Khouri em seus filmes estrelados pelo mulherengo Marcelo.

Vera Fischer aparece com uma beleza tão extraordinária neste filme que parece saída de alguma pintura clássica. Não à toa, a cena em que ela se relaciona intimamente com o filho é explicitamente inspirada na Pietà de Michelangelo. O modo como Khouri vê os corpos femininos tem essa relação da apreciação artística. Embora o desejo esteja também presente, o sentido de busca da beleza clássica comparece de maneira forte. E há os close-ups dos olhares, todos poderosos. Principalmente quando vemos Ana, mas também o personagem de Tarcísio Meira, que interpreta um rico político paulista que exige exclusividade de Ana naquele bordel, e tem a intenção de ajudar a liderar a oposição a Getúlio Vargas momentos antes de o presidente instituir o Estado Novo.

Uma das coisas que mais me agradou no filme foi o início, quando o menino Hugo chega no prostíbulo sem saber que ambiente era aquele. Sua intenção é encontrar a mãe, que fica numa situação complicada. Afinal, como explicar a presença de uma criança em um lugar destinado a adultos? E enquanto o garoto espera e é também olhado e assediado pelas outras jovens mulheres do bordel, ouvimos canções clássicas do cancioneiro brasileiro na voz de cantores como Francisco Alves e Orlando Silva. Inclusive, no final do filme, ainda ouvimos mais uma linda do Francisco Alves, chamada "Misterioso amor", que brinca com o título do filme e sua temática edipiana.

Ainda que vejamos em outros filmes do realizador personagens que atravessam a infância e a adolescência tendo que lidar com o desejo, como em EROS - O DEUS DO AMOR (1981) e AS FERAS (1995), em nenhum outro filme de Khouri o Complexo de Édipo é tão bem explorado quanto em AMOR ESTRANHO AMOR. Quando o garoto vai para seu quarto e sabe que a mãe está transando com um homem, ele chora copiosamente. O filme ganha uma dimensão onírica quando o desejo inconsciente (ou talvez nem tão inconsciente assim naquele momento) se materializa na cena entre mãe e filho.

Eis um filme que oferece pano pra manga para uma série de estudos e discussões, que vão muito além da polêmica pobre que se instalou em torno dele nesses anos todos. Além do mais, junto à direção cheia de classe do realizador, há ainda a música sempre brilhante de Rogério Duprat, a Traditional Jazz Band (adorei as cenas com a banda na festa), a direção de fotografia do mestre Antonio Meliande, um elenco de apoio de primeira linha - Mauro Mendonça e Otávio Augusto, as jovens Vanessa Alves, Sandra Graffi e principalmente Matilde Mastrangi, rainha do cinema erótico brasileiro, que comparece em uma cena pra lá de inspirada.

Por tudo isso, a exibição do filme no Canal Brasil com um upgrade na imagem e no som na última quinta-feira foi um presente para os cinéfilos e para os apreciadores da obra do diretor. 

Agradecimentos à Paula pela companhia durante a sessão.

+ TRÊS FILMES

FENDAS

Assim que vi DE VEZ EM QUANDO EU ARDO (2020), o mais recente trabalho de Carlos Segundo, fiquei logo curioso para entrar em contato com outras obras do autor. Felizmente, pude ter essa oportunidade, e foi logo com um longa-metragem. E é interessante fazer essa jornada ao contrário, do mais recente para o mais "antigo" e ir percebendo as conexões entre as obras. Assim como no curta, FENDAS (2019) traz um mistério e um interesse pela imagem como um objeto misterioso. O fato de haver também protagonistas mulheres em seus filmes também acentuam esse mistério, por mais que o mistério na mulher talvez seja hoje em dia mais uma convenção do que uma verdade, não sei. O que me deixou confuso no filme foi a união de imagem e som e o foco que se estabelece no som, um som que chega de maneira mágica do outro lado do Atlântico. Ou seria uma manifestação física? Essa relação com a física e a metafísica é uma das coisas que mais tem me interessado na obra, mas também suas escolhas no filmar, como o momento em que vemos uma conversa em um único plano que dura 12 minutos, com câmera parada, ou a cena da imagem com o carro em movimento olhando para trás, na estrada. Trata-se de um filme que desejamos experienciar numa tela grande, inclusive pelos efeitos sonoros. Será que será possível?

CABEÇA DE NÊGO

O nosso FAÇA A COISA CERTA, feito em sintonia com um momento especialmente favorável à reação mais ativa quando se faz necessário. CABEÇA DE NÊGO (2020), de Déo Cardoso, é também um filme que pode ser muito especial para quem é de Fortaleza, como eu, quem é professor de escola pública como eu. Eu me vi naquele espaço. Embora conte com uma atriz famosa e ótima (Jéssica Ellen), são os jovens atores iniciantes que são o coração do filme. Impressionante o domínio narrativo da direção, do roteiro, da montagem. A história passa voando e traz conexões com os protestos e ocupações ocorridas em escolas secundaristas de poucos anos atrás.

SEM DESCANSO

A história que SEM DESCANSO (2019) escolhe para ser o coração e o ponto de partida é muito poderosa: a investigação do desaparecimento de um rapaz depois de ele ter sido abordado por três policiais e ser levado em uma viatura. A história aconteceu em Salvador em 2014 e é realmente dolorosa. Gosto de como o diretor Bernard Attal costura a história a partir dos depoimentos. E também acho interessante o link com a questão da tradição de violência na polícia desde os tempos de Brasil-império. Mas a impressão que fica é que começou a faltar foco a partir daí. E o foco diminui mais ainda quando tenta-se uma expansão da problematização. Ainda assim, é um filme que merece ser visto e divulgado. Sem dúvida nenhuma.

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