domingo, dezembro 27, 2020

OS OLHOS DE CABUL (Les Hirondelles de Kaboul)



Neste ano de 2020 regido pelo Sol, o lado mais podre da espécie humana está cada vez mais visível. E se é um ano em que o racismo é um tema quente, também o é a misoginia, a violência contra a mulher. E se em países como o Brasil essa violência se apresenta tão explícita, é de se imaginar que a situação seja ainda mais alarmante em países regidos por teocracias, como é o caso do Afeganistão, um lugar assombrado pelo horror dos talibãs.

Para retratar o sentimento de extrema violência com a mulher, nada melhor do que diretoras mulheres. Em OS OLHOS DE CABUL (2019), a cineasta Zabou Breitman, especialista em filmes e séries de temática feminista, se junta a Eléa Gobbé-Mévellec, especialista em animação, para construir uma das mais pungentes obras sobre o assunto já vistas. A animação em 2D é tão realista e a narrativa é tão envolvente que, com o passar dos minutos, logo esquecemos que estamos vendo uma animação. É como se aqueles personagens tivessem se materializado em algo muito próximo do real.

Uma das cenas mais tristes de OS OLHOS DE CABUL é uma que mostra a diferença entre o passado de Cabul, uma cidade com alegria, vitalidade, pessoas indo ao cinema e andando alegremente pelas ruas, e a Cabul do presente, em ruínas, com as pessoas enfurnadas em suas casas e umas poucas transitando pelas ruas, entre elas mulheres usando burcas. Além disso, a primeira cena do filme (ou uma das primeiras) é de um apedrejamento, o que já nos coloca dentro de um universo extremamente brutal e ignorante, em que as regras impostas pelo regime fazem questão de punir da pior forma possível a mulher.

Por isso, não deixa de simbolizar uma luz em meio às trevas a presença e a vontade de viver de Zunaira, uma jovem mulher casada com Mohsen. Eles são jovens e ainda ousam sonhar naquele mundo onde apedrejamentos se tornaram uma rotina. Zunaira tem um segredo para ganhar vitalidade enquanto fica em casa: ela desenha, faz arte.

Há outro casal importante para a história: Atiq e Mussarat. Ele trabalha para os talibãs, levando prisioneiros e prisioneiras para os apedrejamentos. Sua esposa está muito doente, prestes a morrer. Sabendo do destino dela, ele quer que pelo menos ela sofra menos, sinta menos dor durante o dia. Alguns de seus colegas o aconselham a abandoná-la ou sacrificá-la. E isso já acentua a visão que aquela sociedade tem da mulher é de um objeto que pode ser descartado sem a menor importância.

Um dos méritos do filme é estabelecer esses pontos de vista masculinos e femininos ao longo da narrativa, assim como também um pouco da rotina e dos costumes religiosos. Mas é também um mérito o roteiro perfeitamente amarrado em que as vidas desses personagens vão se enredando em uma teia de tragédias e de dores, ainda que a esperança esteja ali, pequena, mas existente.

Gostaria de ter escrito sobre este filme no calor do momento, assim que saí impactado da sessão, há algumas semanas, mas o tempo e as circunstâncias foram atrapalhando. Agora que estou fazendo a lista de melhores do ano e sei que este foi um dos meus favoritos, senti necessidade de voltar a ele e de enaltecer sua importância e sua beleza triste.

+ TRÊS FILMES

SOUL

Uma espécie de cruzamento de DIVERTIDA MENTE (2015) com VIVA - A VIDA É UMA FESTA (2017). Alia o aspecto mais cerebral do primeiro, brincando com situações extra-físicas, com o sentimentalismo do segundo, ao procurar lidar com a beleza das coisas simples da vida, além de também ter um protagonista apaixonado por música. SOUL (2020), de Pete Docter e Kent Powers, cresce a partir da cena da troca de corpos, mas já havia ficado bem fascinante nas cenas de desespero do protagonista quando se vê na fila para chegar ao outro lado. Há um quê de A FELICIDADE NÃO SE COMPRA, e por isso funciona bem como filme de Natal deste 2020. Agora, é impressão minha ou é a primeira animação da Pixar com um protagonista negro?

MEMÓRIA DE HELENA

Interessante ver este filme alguns meses depois de ter assistido VIDA DE MENINA, de Helena Solberg, e ver o quanto os polos masculino e feminino se apresentam de maneira explícita se formos comparar. MEMÓRIA DE HELENA (1969), primeiro longa de David Neves, é uma adaptação bem livre dos diários de Helena, tomando a liberdade de trazê-la para os anos 1960 e para o uso de registros em super 8 em complemento ao diário de sua vida. O espírito da época da contracultura e inspirado na Nouvelle Vague francesa está presente principalmente nos cortes abruptos, na montagem que alterna tempos de maneira criativa. Até os créditos, Neves faz questão de tirar. É um efeito semelhante ao que Truffaut fez em FAHRENHEIT 451, mas acredito que Godard havia usado antes. E há Adriana Prieto no papel da amiga de Helena. Prieto que se tornou uma lenda do nosso cinema. E há uma participação de Humberto Mauro, numa cena curtinha. Sem falar no roteiro de Paulo Emílio Salles Gomes! Que luxo!

BEIJO 2348/72

Delícia de filme, hein. Nunca vi Fernanda Torres tão engraçada. Um gênio essa mulher. E Chiquinho Brandão é ótimo também. Muito divertido e talentoso. Pena que morreu no ano seguinte, tão precocemente. Em BEIJO 2348/72 (1990), de Walter Rogério, temos a história de um processo que corre na justiça da demissão de um funcionário por ter, supostamente, beijado uma colega de trabalho e ter trazido toda uma discussão sobre o quão indecente ou impróprio é o beijo etc. Mas o melhor está mesmo nas pequenas coisas, nas cenas de Chiquinho com Fernanda e também com Maitê Proença, que faz a mulher mais desejada da fábrica. A narrativa se encaminha por trajetos que eu jamais imaginaria, mas achei uma pena que a conclusão não tenha sido tão boa. Ainda assim, é uma pequena joia de nosso cinema e com um elenco de apoio de luxo.

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