terça-feira, dezembro 01, 2020

ERA UMA VEZ UM SONHO (Hillbilly Elegy)



Uma surpresa positiva este ERA UMA VEZ UM SONHO (2020), de Ron Howard. Por ser um cineasta sem muita identidade e que trafegou por diferentes caminhos, não dá para esperar algo de grande impacto dele. Por outro lado, é justamente por isso, e por ele ter alguns acertos em sua carreira, que esse tipo de surpresa pode ocorrer. Lembremos que Howard tem em seu currículo obras empolgantes como O PREÇO DE UM RESGATE (1996) e FROST/NIXON (2008) - sim, eu sei que acabam sendo exceções em uma filmografia extensa e com muitos deslizes.

ERA UMA VEZ UM SONHO está longe de ser uma obra sutil no tratamento das emoções, mas talvez seja justamente disso que eu tenha gostado. É um filme que não tem medo de chafurdar na lama da pobreza e da decadência humana frente ao vício nas drogas, que é o aspecto que mais pesa na história da família. 

No mais, é comovente a luta do protagonista J.D. (Gabriel Basso na fase adulta; Owen Aztalos na adolescência) de buscar um caminho de sucesso na carreira, vindo de uma família tão problemática e com tão pouca grana. Trata-se de mais um filme que escancara as desigualdades americanas e que mostra o quanto os Estados Unidos são um país que não tem a menor intenção em trazer benefícios aos mais pobres, sem um sistema de saúde pública e com uma educação superior caríssima.

Glenn Close está ótima como a avó disposta a tudo para ajudar o neto. Ela é o coração do filme. Tocante a cena em que o garoto, depois de amargar notas muito baixas na escola, mostra para a avó a nota alta que tirou em matemática, como que agradecendo-a por ter se esforçado para ajudá-lo, diante das dificuldades impostas pelos problemas familiares. Quanto a Amy Adams, a atriz parece uma continuação mais decadente de sua personagem de SHARP OBJECTS, a série da HBO.

O filme é adaptação do best-seller de J.D. Vance, que expôs de maneira corajosa a história de sua família, e que agora ganhará ainda mais visibilidade com um filme produzido pela Netflix. Quem fez a adaptação para o cinema foi Vanessa Taylor, a roteirista de A FORMA DA ÁGUA, de Guillermo del Toro.

Quanto às chances do filme na temporada de premiações, talvez ainda seja muito cedo para dizer, pois tudo está muito atípico neste ano, inclusive com este novo calendário do Oscar. Mas creio que as maiores chances são mais para Glenn Close do que para qualquer outro técnico ou intérprete. Lembremos que Close já concorreu ao Oscar em sete ocasiões e não venceu em nenhuma.

+ TRÊS FILMES

O DIABO DE CADA DIA (The Devil All the Time)

É uma obra surpreendente em muitos aspectos. Não esperava o grau de violência e uma abordagem da fé cega e estúpida com tamanha intensidade. Algumas coisas funcionam mais que outras e muito do valor do filme está no belo desempenho de Tom Holland. É em O DIABO DE CADA DIA (2020) que eu finalmente percebo o quanto o garoto é ótimo ator. Por outro lado, Robert Pattinson não está bem. Não sei se por culpa de Antonio Campos, o diretor, ou se ele mesmo escolheu um caminho ruim para fazer o seu pastor mau caráter e abusador de garotas. Já Harry Melling ficou perfeito como um fanático louco. Grande atuação. Gosto também do modo como o filme vai se livrando de seus personagens ao longo da narrativa, que se estende por uns dez ou doze anos. É um bom retrato de um mundo cão do interior americano. Em alguns momentos senti influências de Martin Scorsese, tanto no uso da narração (do próprio romancista) quanto do uso da violência.

BORAT - FITA DE CINEMA SEGUINTE (Borat - Subsequent Moviefilm)

Tenho pouca lembrança do filme de 2006, mas se não me engano era um pouco menos irregular, embora também fosse um filme baseado em esquetes. Este aqui, porém, tem um significado maior por causa da era da pós-verdade. BORAT - FITA DE CINEMA SEGUINTE (2020), dirigido por Jason Woliner, deve servir para que alguns republicanos (ou bolsonaristas de linha "ideológica" brasileiros) vejam o absurdo da bolha em que vivem. Há coisas tão pesadas do ponto de vista político (como a saudação nazista feita por redneck) que precisam borrar o rosto da pessoa que está sendo filmada. A cena com Rudy Giuliani, ex-prefeito de Nova York, deixa dúvidas se houve alguma combinação, pela posição das câmeras e atos do sujeito, mas tudo é possível. No mais, excelente a adição de Maria Bakalova no papel de filha de Borat. Ela traz novo frescor e tem um timing cômico muito bom.

O QUE FICOU PARA TRÁS (His House)

Mais um exemplar de cinema de horror que trata de assuntos sociais, em especial de personagens negros, trazendo questões vindas da terra natal, já que o casal está fugindo de uma guerra civil em seu país, o Sudão do Sul, e buscando abrigo na Inglaterra. Em O QUE FICOU PARA TRÁS (2020), de Remy Weeks, o casal, que já sofreu em conviver com uma perda, passa a ser assombrado na casa que lhe é fornecida pelo governo. Alguns sustos são clássicos, mas funcionam muito bem; aos poucos o filme vai abandonando esse recurso e procurando destacar a psicologia dos protagonistas e sua relação distinta com os fantasmas.

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