sábado, novembro 21, 2020
COMPASSO DE ESPERA
Ontem foi Dia da Consciência Negra. Infelizmente foi um dia menos de celebração e mais de lamento, já que, no dia anterior, um homem negro foi espancado até a morte em um supermercado de Porto Alegre. Houve uma série de manifestações em algumas partes do país, mas penso que ainda são poucas pela gravidade do ocorrido, se compararmos com o que aconteceu com a morte de George Floyd, nos Estados Unidos. O racismo que o nosso Vice-Presidente disse não existir no país está a cada dia mais escancarado.
Aliás, tudo neste ano de 2020, regido pelo Sol, está sem o véu. Sempre houve preconceito, apenas agora ele está disposto nas prateleiras para todo mundo ver. É uma estrutura que imagino que vai cair no futuro mais ou menos próximo, otimista que sou. Assim, como forma de relembrar o dia, resolvi finalmente ver um dos filmes mais importantes da cinematografia brasileira, COMPASSO DE ESPERA (1973), única incursão pelo cinema do diretor de teatro Antunes Filho, e um espaço livre para o brilho do grande Zózimo Bulbul.
Na trama, Bulbul é Jorge, um homem que tem alguns privilégios por ter tido um padrinho branco e rico. Ele é poeta, publicitário, mora em um apartamento bonito, veste boas roupas e costuma ser bastante assediado pelas mulheres, inclusive mulheres brancas da alta sociedade. A mulher que o auxilia na agência de publicidade é Ema (Elida Palmer), que é mais velha do que ele, mas que nutre uma paixão profunda pelo rapaz.
No entanto, o coração de Jorge passa a balançar por uma outra mulher que aparece em sua vida, Cristina (Renée de Vielmonde, linda), também vinda de família abastada, e que se encanta por aquele homem negro alto, forte e com uma inteligência e sensibilidade admiráveis. O curioso é que, no início do relacionamento, Jorge chega a perguntar à Cristina se ele gosta de fato dela, pois existe sim uma espécie de utilização do corpo do negro como objeto de fetiche ou coisa parecida. Ele fica mais tranquilo quando ela diz que o ama de verdade.
COMPASSO DE ESPERA não é apenas uma história de amor quase impossível dentro de uma realidade que parece recém-saída da escravatura; é também um filme político e reflexivo sobre o quanto os brancos dominantes preferem continuar tratando os negros como subservientes, como inferiores. As tensões que se notam em ambientes sociais em que brancos e um percentual bem menor de negros frequentam já antecipam o barril de pólvora que o filme pode apresentar. E então chegamos na inesquecível (e muito triste) cena da praia.
Fiquei um pouco incomodado com o fato de Bulbul ter sido dublado por Roberto Maya; logo o Maya, que interpretou Marcelo, o playboy caçador de mulheres dos filmes de Walter Hugo Khouri. Não que tenha ficado ruim, mas não me pareceu uma boa ideia. De todo modo, pode-se culpar o longo processo de pós-produção do filme, que foi filmado em 1969, mas só teve sua primeira exibição pública em 1973, foi lançado no circuito comercial em 1975 e acabou indo mal de bilheteria. Mas o importante é que o filme sobreviveu e está aí para quem quiser ver um exemplar do que há de melhor do cinema negro de resistência made in Brazil.
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