Havia interrompido a leitura de Conversas com Almodóvar, de Frederic Strauss, livro de entrevistas com o maior cineasta espanhol vivo, com a revisão de CARNE TRÊMULA (1997), um dos filmes de que mais gosto de Pedro Almodóvar. Achava que a minha memória de TUDO SOBRE MINHA MÃE (1999) ainda estava relativamente fresca, o que não era verdade, mas geralmente prefiro demorar a rever certos filmes e por isso parei a leitura do livro, que abarca desde seus primeiros filmes até VOLVER (2006). Não sei se o autor continuou a fazer entrevistas regularmente com Almodóvar que possam ser incluídas em uma nova edição futura. De todo modo, trata-se de uma leitura deliciosa e está sendo muito bom retomá-lo.
Foi lendo a parte de TUDO SOBRE MINHA MÃE que soube, admirado, que este foi o primeiro filme de Almodóvar a concorrer em Cannes. Isso é muito curioso, já que o diretor já era prestigiadíssimo há bastante tempo. No festival, Almodóvar ganhou direção e um prêmio do júri ecumênico. E ficou insatisfeito com a Palma de Ouro ser concedida a ROSETTA, dos irmãos Dardenne. Almodóvar preferiria muito mais UMA HISTÓRIA REAL, de David Lynch, o que eu concordo totalmente.
As outras participações de Almodóvar em Cannes foram com VOLVER (prêmios de melhor atriz para Penélope Cruz e de roteiro); A PELE QUE HABITO (2011), com prêmios menores: prêmio da juventude e prêmio técnico de direção de fotografia para José Luis Alcaine; DOR E GLÓRIA (2019), com prêmio de ator para Antonio Banderas e prêmio técnico de música para Alberto Iglesias. JULIETA (2016) passou por Cannes mas não ganhou nenhum prêmio. Uma pena. Eu sou um dos entusiastas do filme.
Depois de cerca de vinte anos que vi no cinema TUDO SOBRE MINHA MÃE (não sei se foi em 1999 ou em 2000), voltei ao filme para tentar captar algo que não havia captado na época, já que esse não é um dos filmes que mais eu amo do diretor, mas que é um dos mais festejados, mais premiados e um dos mais queridos por muita gente. Continua não sendo tão impactante como outras obras, mas é sempre um prazer entrar em contato com o cinema de Almodóvar.
O curioso do título é que parece trazer um caráter muito pessoal e muito autobiográfico, mas não é o caso. Quem quiser se aproximar mais do passado de Almodóvar e de sua relação com a mãe é preciso que veja DOR E GLÓRIA, esse sim o mais pessoal de seus filmes. Mas é sim um filme sobre maternidade. Sobre maternidade e sobre a solidariedade entre as mulheres. Almodóvar acredita que haja muito mais solidariedade e ajuda mútua entre mulheres do que entre homens. O que é verdade e acaba por desconstruir a ideia distorcida de que entre as mulheres existe a rivalidade e não o oposto.
As mulheres de TUDO SOBRE MINHA MÃE são fascinantes. Todas elas. A começar por Manuela (Cecilia Roth), a mulher que retorna a Barcelona totalmente arrasada, depois de ter perdido o filho adolescente, atropelado. As poucas cenas de Manuela com Esteban, o filho, são carregadas de amor e por isso o impacto da cena do atropelamento é grande. Quando Manuela retorna a Barcelona é com o objetivo de contar ao pai do filho, uma transexual chamada Lola, que eles tiveram um filho juntos e que agora ele estava morto.
Não encontra de imediato Lola, mas faz amizade com outras mulheres: uma transexual que se vira no mundo da prostituição chamada Agrado (Antonia San Juan), uma atriz de teatro chamada Huma (Marisa Paredes) e sua namorada Nina (Candela Peña) e uma religiosa chamada Rosa (Penélope Cruz). Esse é o grupo que se forma e é muito prazeroso vê-las juntas, ver a dinâmica do relacionamento que se articula a partir da vontade de ajudar a outra, a partir da dor. Todas elas são mulheres sofridas por situações diversas, seja pelo abandono, seja pela partida da pessoa amada, seja pela doença.
O fato de termos duas mulheres que foram engravidadas pela mesma pessoa e essa pessoa é uma transexual foi baseada em fatos, em situações vistas por Almodóvar naquele final de século. Ele soube mesmo de uma transexual que, mesmo usando biquíni, reclamava da minissaia da mulher, um machismo absurdo herdado da cultura patriarcal.
Porém, TUDO SOBRE MINHA MÃE ainda não é daqueles filmes devastadores de Almodóvar. Pelo menos não para mim. Não como CARNE TRÊMULA ou como FALE COM ELA (2002), por exemplo. Mas é de uma beleza plástica imensa. A fotografia do brasileiro Affonso Beato é estupenda, assim como a trilha sonora de Alberto Iglesias. Talvez, fora a direção e as atuações, esses dois aspectos sejam os mais importantes para a construção de um melodrama nos moldes sirkianos, como talvez tenha sido essa a intenção de Almodóvar. E talvez esse excesso de cuidado com os aspectos técnicos tenha prejudicado um pouco o tratamento com a dor das personagens. Ainda assim, há um cuidado para que elementos cômicos sejam vez por outra introduzidos de modo que diminuam a aura pesada, como no momento em que as mulheres dizem que há tempos não fazem sexo oral em um homem.
Pela entrevista contida no livro, ao que parece Almodóvar tinha de fato um interesse em não ser tão sentimental. Fala que não gosta dos filmes sentimentais de Hollywood, diz gostar de um melodrama como ONDAS DO DESTINO, de Lars von Trier, por exemplo. Que é um filme que preciso rever, aliás. E, além de A MALVADA, de Joseph L. Mankiewicz, obviamente, há outro que é referência também para TUDO SOBRE MINHA MÃE e que ainda não vi, que é NOITE DE ESTREIA, de John Cassavetes.
Assim é a vida de cinéfilo: sempre tendo lacunas a preencher, filmes a rever, além de interesses ligados também à literatura e outras artes, que com frequência tangenciam o cinema. Não que eu esteja reclamando. Trata-se de um prazer e um dos maiores motivos de se estar vivo neste mundo.
Agradecimentos à Paula, que muito gentilmente viu este filme comigo em nova sessão simultânea à distância.
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