"No estado que as coisas se encontram hoje, eu realmente acredito que o horror é o gênero narrativo que mais se aproxima da nossa realidade. Primeiro, porque nossa realidade está se dissolvendo, e essa é uma característica essencial das histórias de horror. Depois, porque nossa vida diária está infectada, como em um body horror de David Cronenberg minutos antes da metamorfose se completar e o monstro surgir entre nós. Logo, eu acredito que só o Horror mesmo pra salvar a gente de falar sobre esse mundo sem pé, nem cabeça que a gente vive."
Ramon Porto Mota
Tem sido muito gratificando ler as entrevistas do cineasta paraibano Ramon Porto Mota, que estreia seu primeiro longa-metragem, depois da experiência em coletivo em O NÓ DO DIABO (2018), em um momento especialmente feliz para o cinema de gênero brasileiro. Vejam só: na mesma semana em que o seu filme estreou, entrou em cartaz também em outras salas do país MORTO NÃO FALA, de Dennison Ramalho, e AMOR ASSOMBRADO, de Wagner de Assis. E na semana anterior havia estreado O CLUBE DOS CANIBAIS, de Guto Parente. Ou seja, o que ele fala acima tem tudo a ver com esse momento tão especial em que o cinema de horror brasileiro está deixando de ser rejeitado e está sendo abraçado por uma parcela cada vez maior de espectadores, ao mesmo tempo em que estamos vivendo um momento político também singular.
Nas entrevistas de Mota, ele afirma que não tinha a menor intenção de que seu filme A NOITE AMARELA (2019) sequer fornecesse metáforas para o momento político brasileiro. Mas acontece que a percepção da obra de arte, ainda mais essa do tipo mais livre e cheia de espaços, pode trazer interpretações diversas, sim. E isso já não está mais nas mãos do artista. Além do mais, o artista costuma ter antenas que captam o espírito da época. Assim, o mal estar com o mundo contemporâneo se faz bastante presente.
A NOITE AMARELA, como experiência fílmica, está destinado a ser aquele tipo de filme que pode não ser apreciado por um público grande, por sua opção em quase se desvincular de uma trama no sentido convencional, especialmente a partir de seu terço final, e se deixar levar pela atmosfera de sonho/pesadelo, fazendo com que vejamos as pessoas sendo engolfadas pela escuridão, por algo não muito fácil de ser compreendido. O escuro é um aspecto predominante no filme. Quase todas as cenas se passam à noite, desde o começo, quando os jovens secundaristas chegam à ilha para passar uns dias e comemorar a formatura do ensino médio.
A opção de Ramon Porto Mota em adotar uma fotografia suja, áspera, com pouca iluminação, como se fosse um filme feito nas primeiras experiências com o digital, contribui para a sensação de que estamos vendo uma produção estranha a esses tempos em que as imagens são cada vez mais nítidas. Ao mesmo tempo, difícil não apreciar o belo trabalho de direção de arte e fotografia, com um uso de cores que remetem ao cinema italiano de horror dos anos 1970. Além do mais, reparem no cuidado com a realização do cartaz.
A NOITE AMARELA é um filme marcado por sua geografia, seu sotaque paraibano, seus diálogos aparentemente espontâneos, mas que na verdade foram memorizados pelos atores. O tipo de dramaturgia também é diferente, estranho. Nas entrevistas, Mota vem comentando que seu filme é mais herdeiro das experiências com o cinema de horror de Walter Hugo Khouri e Jean Garrett do que com o cinema de horror estrangeiro. De fato, quem viu os filmes de Khouri e Garrett sabe do que ele está falando e vai concordar. A intenção é fazer uma obra atemporal, cuja estranheza atravessará décadas.
Na trama, um grupo de adolescentes chega a uma ilha praticamente desabitada e sem sinal de celular. Depois de se estabeleceram em uma casa, uma das meninas, Karina (Rana Sui), desaparece, e a missão da turma passa a ser procurar pela amiga pela noite escura. Eles resolvem se separar e acabam se deparando com estranhas coisas que lhes assombram, como a presença de duplos. No meio disso tudo, há um grande flashback que dá uma quebrada no filme, como se o tirasse do gênero horror e o colocasse em um daqueles filmes dos anos 1950, com jovens duelando. Isso contribui para a estranheza, mas não deixa de ser no mínimo divertido.
Além do mais, a presença desses jovens atores e de um cinema que não tem medo de experimentar, traz um frescor necessário para este momento em que há filmes de gênero que se esforçam para dialogar mais com grandes audiências. Quanto mais pluralidade, melhor.
+ TRÊS FILMES
PYEWACKET - ENTIDADE MALIGNA (Pyewacket)
Um baita exemplo de como às vezes ter um orçamento muito baixo, mas muita criatividade e senso de direção pode ser recompensador. Se PYEWACKET não estreasse no circuito, não saberia sequer de sua existência. Por isso é preciso que as distribuidoras façam mais um trabalho de curadoria, para nos apresentar obras tão impressionantes como essa. Um dos grandes méritos do filme é o quanto se constrói uma atmosfera de medo, apreensão, arrependimento e outras coisas apenas com expressões faciais e movimentos de câmera precisos, nada mirabolantes. Na história, garota, revoltada com a mãe que quer tirá-la da escola e da cidade, tenta se vingar dela através de um feitiço de magia negra. Vi o filme em casa, mas certamente é filme que merece ser visto no cinema. Direção: Adam MacDonald. Ano: 2017.
IT - CAPÍTULO 2 (It - Chapter Two)
Uma tarefa muito difícil tornar crível e assustadora esta continuação, agora com os personagens adultos, na faixa de 40 anos, tendo que se comportar como em filme de adolescente para matar o monstro, o palhaço assassino de crianças (e adultos também). Infelizmente o filme funciona em alguns momentos, mas, à medida que vai se aproximando de sua conclusão, vai perdendo a força. A escalação do elenco adulto foi boa (Jessica Chastain, James McAvoy e Bill Hader, principalmente) e as várias cenas pequenas de flashback com o elenco infantil e carismático são legais, mas o principal, que é a metodologia para matar a criatura talvez só funcione no romance. É muito complicado tornar gráfico e ao mesmo tempo assustador tudo aquilo. Também senti falta de uma maior conexão afetiva com os personagens adultos. Enfim, uma pequena decepção para um filme ambicioso como esse. Direção: Andy Muschietty. Ano: 2019.
KARDEC
Eis o candidato a filme mais chato e aborrecido do ano. Perderam a oportunidade de contar uma história interessante de maneira agradável e o que temos é um filme que mais se parece com aquelas produções de época de quinta categoria lançadas diretamente em home video. Além do mais, há um tom solene que enche o saco, com uma música que traz a tentativa de exaltar o legado de Allan Kardec e sua coragem de peitar a Igreja Católica e as instituições. Pode ser uma pá de cal na chamada nova era dos filmes espíritas. Direção: Wagner de Assis. Ano: 2019.
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