quarta-feira, setembro 11, 2019

PACARRETE

A edição do festival Cine Ceará deste ano foi talvez a mais bonita, a mais bem-sucedida, a que mais encheu a nossa alma de amor e orgulho. Amor nestes tempos de ódio e intolerância; orgulho do nosso cinema brasileiro, e do nosso cinema cearense, especificamente, que nunca esteve em fase tão boa, tanto em quantidade quanto em qualidade. Não por acaso, tivemos um filme de um diretor cearense abrindo o festival, o premiado A VIDA INVISÍVEL, de Karim Aïnouz; um que ganhou a mostra competitiva, GRETA, de Armando Praça; e o filme que encerrou o festival, PACARRETE (2019), de Allan Deberton. E é deste filme, que chegou com oito kikitos de Gramado, que falaremos agora.

Conheço o trabalho de Deberton desde o ótimo curta DOCE DE COCO (2011), que já mostrava um cineasta que tinha uma sensibilidade muito especial para lidar com questões humanas, com pessoas passando por situações de fragilidade. O curta apresenta uma garota que engravida de um rapaz conquistador de sua cidadezinha. O filme seguinte, O MELHOR AMIGO (2013), trata do amor platônico que um rapaz sente pelo amigo; depois veio OS OLHOS DE ARTHUR (2016), um trabalho que lida com um personagem autista. Ou seja, já dá para ver que desde os seus trabalhos iniciais, Deberton procura fazer uma espécie de defesa de pessoas incompreendidas.

Não é diferente com PACARRETE, sua estreia em longa-metragem no cinema. O que temos aqui é a história de uma mulher considerada louca pela cidade em que mora. A personagem é baseada na verdadeira Pacarrete, uma senhora excêntrica e espalhafatosa de Russas-CE que tentava mostrar o valor da arte e da dança para o povo simples da cidade. A verdadeira Pacarrete se chamava Maria Araújo Lima.

Quem encarna a versão para o cinema da personagem é a ótima Marcélia Cartaxo (prêmio de melhor atriz em Berlim por A HORA DA ESTRELA, de Suzana Amaral, entre outros vários prêmios). Ela esteve presente no curta de estreia de Allan Deberton e novamente se mostra um amuleto de sorte para o jovem cineasta.

É normal ficar um pouco incomodado a princípio com o tom que é dado à personagem. O filme começa com Pacarrete varrendo a calçada de sua casa dançando, lembrando um bocado os musicais da velha Hollywood, especialmente CANTANDO NA CHUVA. O belo colorido da fotografia, com auxílio da luz forte do Ceará, emula o technicolor dos anos de ouro do cinema americano. Depois vemos o quanto a personagem é exagerada na fala, o tom sempre acima. É quando vemos que estamos diante de uma comédia popular, pronta para ser apreciada por um público maior do que o dos festivais.

E, uma vez que nos acostumamos e aceitamos os trejeitos de Pacarrete, fica fácil gostar da personagem, de se solidarizar com ela. Inclusive, há uma fala que ela cita a falta de interesse das pessoas por arte que fez com que o Cine São Luiz em peso batesse palmas.

No elenco, há um personagem que representa uma espécie de contraponto para Pacarrete, o amoroso comerciante Miguel, vivido por João Miguel. Ele tem um carinho todo especial pela bailarina aposentada e isso faz com que ela nutra por ele um sentimento de amor platônico. Pacarrete mora sozinha com a irmã mais velha Chiquinha que vive em uma cadeira de rodas, vivida por Zezita Matos. Ela é outra personagem que traz uma sobriedade que equilibra as falas de Pacarrete. Há também a empregada da casa, Maria, vivida por Soia Lira.

Pacarrete tem interesse em aproveitar a comemoração dos 200 anos da cidade de Russas para apresentar à cidade o seu número de balé, que há tempos ela se dedica em casa, desde que voltou de Fortaleza, para cuidar da irmã mais velha. Porém, ela não é bem recebida pelos funcionários da prefeitura, que acreditam que seu trabalho não é de interesse do público, que quer mesmo uma festa com forró. Sem falar, que não acreditam na sanidade dela.

Em algum momento do filme, o melodrama entra forte e arrepiante. É louvável a transição tranquila que o cineasta consegue fazer da comédia para o melodrama e vice-versa. E muitas vezes de uma hora para outra, como se quisesse emprestar muito da molecagem cearense para o seu filme, como em certo momento muito triste que logo é seguido de uma piada que fez a plateia chorar de rir.

Entre o choro breve e o riso farto, PACARRETE é um dos mais bonitos exemplares recentes do nosso cinema. E chega em um momento muito necessário. Assim como a bailarina que não deixou de lado o seu sonho, precisamos seguir em frente nestes tempos difíceis para a cultura e para a própria sanidade mental. O filme deve estrear em todo o Brasil no primeiro trimestre de 2020.

+ TRÊS FILMES

MARIA DO CARITÓ

Filme simpático, mas que talvez falhe em buscar cenas engraçadas nem sempre sendo bem-sucedido. O mais interessante do filme é o absurdo da situação, da moça vitalina em busca de marido, mas cujo pai a guardou para um santo. Depois veremos que o filme também funciona como uma metáfora da situação política atual no Brasil. Aliás, quase todo filme brasileiro nos faz lembrar da realidade, por mais inocente que pareça. Curiosamente, é um filme que dialoga com A VIDA INVISÍVEL, ao abordar a questão das mulheres sendo enganadas pelos homens, geralmente os pais, representando um patriarcado decadente. Direção: João Paulo Jabur. Ano: 2019.

CANÇÃO SEM NOME (Canción sin Nombre)

Duas histórias paralelas que se cruzam: a da jovem mulher em busca do filho recém-nascido sequestrado e a do jornalista que procura, em um Peru ainda sob domínio da ditadura militar (1988), ajudar aquela mulher. O maior destaque é visual. A fotografia, em 4x3 e em preto e branco, lembra bastante o cinema mudo dos anos 20, com uso de muitas sombras e uma sensação de opressão o tempo inteiro. Ainda assim, há muitas imagens lindas, especialmente as feitas em exteriores. Senti falta de uma maior conexão com o drama dos personagens, mas isso pode ser mais problema meu do que do filme. Direção: Melina Léon. Ano: 2019.

RAFIKI

Senti muita falta de me envolver com as personagens, de me importar com o destino e a união das duas. E isso já diz muito do filme para mim. Por mais que haja a intenção de abordar o tema do preconceito em um país extremamente preconceituoso como o Quênia, não me empolgou em momento algum. Ainda assim, gosto das meninas, que estão muito bem em seus papeis. Direção: Wanuri Kahiu. Ano: 2018.

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