sábado, dezembro 15, 2018

CORAÇÃO SELVAGEM (Wild at Heart)

Rever CORAÇÃO SELVAGEM (1990) foi recordar o momento mágico de ter visto este filme no cinema pela primeira vez. Eu era um jovem cinéfilo e também bastante entusiasmado com aquela série fantástica que a Globo tentou estragar, TWIN PEAKS (1990-1991). O filme foi feito durante as gravações da série e por isso hoje eu tenho sentimentos mistos em relação a este longa-metragem. Por mais que a experiência de vê-lo tenha sido fascinante, o conceito de obra-prima lynchiana seria mudado pelo próprio David Lynch, que se superaria enormemente nos trabalhos seguintes.

Ainda assim, CORAÇÃO SELVAGEM deve ser visto com carinho, embora possa desagradar a quem o considere excessivo ou histérico. Também é um filme que prima mais pelo bizarro e pelo cômico do que pelo assustador, coisa que Lynch faria tão melhor, inclusive na série TWIN PEAKS. Aliás, há alguns atores e atrizes da série no elenco em participações muito bem-vindas: Grace Zabriskie, Sherilyn Fenn, David Patrick Kelly, Sheryl Lee e Jack Nance.

Lembro que a cena de Sailor (Nicolas Cage) matando um homem a porrada ao som de um rock bem pesado ("Slaughterhouse", de uma banda chamada Powermad) no começo do filme muito me impressionou. Lynch consegue fazer uma ligação muito estreita entre o rock contemporâneo e o rock e o estilo de vida dos anos 1950, tão queridos em sua obra (não à toa Sailor é fã do Elvis Presley e canta duas de suas canções no filme).

Mas uma coisa que eu não lembrava era o lado safado (no bom sentido) no filme. Impressionante como Lynch gosta dessas coisas. Aliás, mesmo no recente TWIN PEAKS - O RETORNO (2017) ele arrumou um jeito de colocar sexo na história. Aqui, o ponto alto da sensualidade vem de um flashback de Sailor. Ele conta para sua amada Lula (Laura Dern, em segunda colaboração com Lynch) uma de suas primeiras experiências sexuais. O detalhe de Sailor abordando a moça é que faz toda a diferença. Eu fiquei surpreso de ter esquecido dessa cena!

Também havia me esquecido da bela sequência que mostra Isabella Rossellini pela primeira vez em cena. Aquela imagem de Rossellini havia sido capa de uma revista SET, na época, no auge criativo e intelectual. A beleza está tanto em sua presença (de cabelo curto e loiro), mas principalmente na construção da direção de arte: ela sai de uma casa simples no meio do nada. Já a participação de Willem Dafoe como Bob Peru é memorável, difícil demais de ir para o arquivo morto da memória. Sua figura grotesca combina bastante com o tom caricato que Lynch pinta nesta sua obra, vencedora da Palma de Ouro em Cannes em 1990.

Outra coisa que dá para perceber em CORAÇÃO SELVAGEM é o quanto é mais um filme com episódios quase soltos do que uma narrativa que se sustenta por um fio condutor. Há várias subtramas que têm, cada uma, a sua força, havendo espaço para mais de dois, três ou mesmo quatro vilões.

É também um filme que soma à obra de Lynch o tema da perdição do herói ou da heroína. No caso, o herói (Sailor) consegue a sua redenção. Mas não sem antes ir ao inferno duas vezes. Por mais que tenhamos uma história que mostra alguém sendo perseguido por um mundo cercado pelo mal por todos os lados, uma característica de quase toda obra de Lynch, o tom é mais leve, graças a um final feliz. E às vezes um final feliz pode ser mais ousado do que um final sombrio e triste.

+ TRÊS FILMES

INVERNO DE SANGUE EM VENEZA (Don't Look Now)

Em homenagem a Nicolas Roeg, finalmente vi este clássico moderno. Acabei não entrando muito no clima, o que também aconteceu com o filme estrelado pelo David Bowie, mas é uma obra singular, com uma montagem bem própria, e um tipo de terror que parece muito distante do que se espera encontrar. Hoje em dia rotulariam como pós-horror. Ano: 1973.

PROCURA INSACIÁVEL (Taking Off)

O filme escolhido para homenagear a passagem de Milos Forman foi a sua estreia nos Estados Unidos. Dá para perceber seu apreço pela contracultura nesta comédia sobre pais em busca de filhos que desaparecem, e o medo de eles se desencaminharem com as drogas etc. As melhores cenas ficam para o final. E a cena da aula de como fumar maconha é sensacional. Ano: 1971.

LOUCURAS DE UMA PRIMAVERA (Milou en Mai)

Um dos filmes que mais transborda vida por todos os poros. E o engraçado é que ele começa a partir da morte da matriarca e de uma espécie de disputa pelos bens etc. Mas o que transforma aquela reunião de família e de agregados numa festa é o clima de maio de 68, que contamina até mesmo a região rural da França. Mágica pura! Direção: Louis Malle. Ano: 1990.

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