quarta-feira, janeiro 17, 2018

ARÁBIA

O que dizer de um filme que consegue ao mesmo tempo narrar com sensibilidade a história de um homem comum em sua trajetória de dor pelo mundo e ao mesmo tempo conclamar o público a usar o seu direito à desobediência civil para fazer valer os seus direitos? Ser transgressor faz muito bem à arte e por isso ouvir em certo momento "Cowboy Fora da Lei", de Raul Seixas, cantada por um grupo de rapazes, é tão bom. Pois esse é ARÁBIA (2017), obra-prima assinada por Affonso Uchôa e João Dumans e vencedor do prêmio de melhor filme no Festival de Brasília.

Quem viu A VIZINHANÇA DO TIGRE (2016) nem imagina o quanto Uchôa cresceu neste seu segundo trabalho em parceria com o roteirista do primeiro filme. Certamente a parceria na direção lhe fez muito bem, mas o fato é que bastam as imagens, nos créditos iniciais, do garoto André (Murilo Caliari) andando de bicicleta ao som de "I'll be here in the morning", de Steven Van Zandt, para percebermos que estamos diante de algo muito especial.

O cuidado com as imagens, que no filme anterior de Uchôa parecia mais solto, é percebido com maior rigor formal já nas primeiras cenas, que nos apresentam ao menino André, à sua tia e ao seu irmão pequeno, que está acamado. A pequena cidade onde moram parece agradável, mas também é triste, a julgar pela imagem que vemos logo de cara de uma fábrica que parece espalhar veneno por toda a redondeza.

Mas teremos ainda uma boa e agradável surpresa depois de sermos apresentados ao estranho e solitário Cristiano (Aristides de Sousa), rapaz que trabalha na fábrica da cidade. Ele será o narrador de sua própria história, a partir do diário encontrado por André. Assim, como em um trabalho literário em que uma história engole a outra, somos levados pelo braço, e com muito prazer e interesse, para conhecer a história de vida de Cristiano, que já antecipa que falará da mulher mais importante de sua vida, Ana (Renata Cabral).

Um dos aspectos mais interessantes de ARÁBIA é como a narrativa em tom rude de Cristiano consegue ser também tão delicada. O filme é praticamente todo narrado com a voz do rapaz, em sua passagem por diversas cidades de Minas Gerais, inclusive tendo feito uma passagem pela prisão por roubo de carro. Em suas paradas em tantos lugares, ele conhece pessoas que influenciam o seu modo de pensar, como o homem que trouxe os sindicatos e a greve a um povoado que estava trabalhando sem ser devidamente pago pelo patrão, dono de uma plantação de tangerinas.

Como se fosse a personificação do povo brasileiro, Cristiano segue procurando um lugar melhor para si. Acredita encontrar a felicidade quando conhece Ana, em uma fábrica. Justamente uma moça que tem leitura e instrução, coisa que ele não tem. Contrariando as previsões mais pessimistas, Ana o ama de volta. Pelo menos até determinado momento de suas vidas, quando algo ocorre e eles não sabem bem o que é. Como se a sorte tivesse prazo de validade.

ARÁBIA ainda conta com uma trilha sonora admiravelmente linda, com canções de Maria Bethânia ("Três apitos", de Noel Rosa), Renato Teixeira ("Raízes"), um senhor cantando de maneira imperfeitamente bela "Marina", de Dorival Caymmi, em uma festa, além das acima citadas. E boa parte das vezes o convite para ouvir as canções segue junto com o convite para se deleitar com a melancolia da narrativa de Cristiano e das imagens deslumbrantes da fotografia de Leonardo Feliciano. O mundo pode ser um lugar triste, mas ainda há espaço para a beleza da arte, que não apenas nos faz pessoas melhores e mais sensíveis, mas também, neste caso, nos incita a agirmos como seres políticos mais ativos.

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