Há filmes que são feitos para que reconquistemos a nossa fé; há outros que nos fazem não acreditar nos nossos próprios olhos, além de também, como é o caso de OS DEMÔNIOS (1971), fazer-nos completamente desacreditados da natureza humana, em sua capacidade de tornar tudo o que deveria ser limpo e sagrado em sujo e podre. Felizmente o cinema, como uma soma de todas as artes, nos eleva e consegue fazer com que o que é feio se torne sublime através do admirável e inconcebível que passeia pelos nossos olhos.
Ken Russell sempre foi um cineasta interessado em coisas profanas mas também em saber lidar com o aspecto humano e digno de pessoas que são vistas pela sociedade como dignas do desprezo. O mesmo admirador do universo da prostituição de filmes como CRIMES DE PAIXÃO (1984) e A PROSTITUTA (1991) tem em OS DEMÔNIOS (1971) sua obra mais polêmica. A intenção era mesmo chocar, já que o julgamento do Padre Grandier (Oliver Reed, excepcional) e a história impressionante da histeria (suposto caso de possessão demoníaca) no convento da Madre Superiora Joana dos Anjos são de cair o queixo.
A história desta Madre Superiora já havia sido contada de maneira mais livre e diferente em MADRE JOANA DOS ANJOS, de Jerzy Kawalerowicz, uma década antes. Mas o filme de Russell vai além, ao transformar uma obra de não-ficção escrita por Aldous Huxley, que por sua vez rendeu uma peça de teatro, em uma espécie de inferno na Terra em que podemos assistir de camarote. Não sem termos respingos de um pouco de fogo, claro. Mas isso é o preço pelo privilégio.
Desde os letreiros que antecipam o filme, OS DEMÔNIOS quer nos fazer acreditar que o registro que veremos a seguir aconteceu de verdade na cidade de Loudon, na França, em 1643. Na época, a cidade estava em paz depois de tantas batalhas entre católicos e protestantes que repercutiram por toda a França. A cidade era então a única a ter autonomia para lidar com seus próprios problemas. E o jovem Padre Grandier é uma espécie de Don Juan local. Se é que o termo é apropriado para um padre.
De todo modo, Grandier é desejado pelas mulheres e não deixa passar as oportunidades de transar com quem quiser em local sagrado. Numa das primeiras cenas, somos apresentados a seu lado mais canalha ao vermos o sujeito responder que não é culpa dele que uma de suas amantes engravidou. Enquanto isso, outra mulher também está apaixonada pelo padre (Gemma Jones). Esta, porém, o padre deseja de todo o coração. E isso é algo que torna a figura de Grandier digna de afeição pelo espectador.
A coisa fica feia para ele quando a Madre Joana dos Anjos (Vanessa Redgrave, excelente!), uma mulher atormentada com sua corcunda, passa a querer se vingar do padre, tornando-o alvo de um grupo de caçadores de bruxas que o levam para um julgamento parecido com o que fizeram com Joana d'Arc. Só que muito mais cruel e doloroso de ver. Impossível não ficar com o sangue intoxicado com as cenas de violência e tortura.
Mas o filme não é só isso. Muito de sua polêmica vem das cenas blasfemas envolvendo os atos de delírio ou de histeria das freiras em torno de símbolos sagrados da Igreja. Há o sonho da Madre Joana com o Padre Grandier descendo de uma cruz e tendo suas feridas lambidas por ela; mas o que mais incomodou os censores na época, a ponto de boa parte do filme ter sido quase perdida ao longo dos anos, foram as cenas dentro do convento, com freiras se masturbando com um crucifixo gigante, por exemplo. A cena de exorcismo de Madre Joana é outra coisa completamente absurda.
Aliás, é tanta coisa inacreditável que se vê em OS DEMÔNIOS que é quase um milagre ter finalmente surgido uma versão supostamente uncut, que traz de volta algumas cenas proibidas, e que, por ter sido remasterizada, tem uma imagem que valoriza a linda fotografia em cores e em scope e a direção de arte espetacular, a cargo de Derek Jarman.
E os demônios? Os demônios são os próprios homens. Ken Russell fez um filma totalmente laico e a culpa de todo o mal está no sistema político - a Igreja pode muito bem ser uma alegoria de qualquer sistema de governo que é capaz de fazer coisas inomináveis e extremamente terríveis. É um filme, inclusive, que deveria ser visto pelas novas gerações. Afinal, vivemos em um momento muito perigoso no que se refere a uma nova ascensão da direita e dos valores "religiosos". Tenhamos muito cuidado com os demônios, portanto.
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