TWIN PEAKS (1990-1991), a série original de David Lynch, nunca deixou de ser vista e revista ao longo de todos esses anos. Tanto por ser cultuada e querida quanto por ser criação (ou co-criação, já que não podemos deixar Mark Frost de fora) de um dos mais admiráveis cineastas de todos os tempos. Mas desde àquela época que nunca se falou tanto em Twin Peaks.
Isso se deve, claro, ao chamado TWIN PEAKS – O RETORNO (2017), um dos maiores eventos cinematográficos do ano. Mesmo sendo feito para a televisão, os dois primeiros episódios foram exibidos em Cannes e foram o maior sucesso do festival, superando em recepção todos os demais filmes, seja os da mostra competitiva, seja os da Un Certain Regard.
Não podia deixar de me preparar para o grande e enigmático retorno de TWIN PEAKS sem rever tudo o que fosse possível da série. Ou seja, as duas temporadas completas, o filme TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER (1992) e a grande pérola do box em BluRay, TWIN PEAKS – THE MISSING PIECES (2014), as cenas deletadas do filme e que estavam, até então, inéditas. A surpresa é constatar que se trata de material de primeiríssima qualidade, talvez superando até mesmo o filme, por mais que isso possa parecer um exagero vindo de algo que depende de outras duas obras – filme e também série – para se compor.
Mas há algo em tudo que Lynch faz – ou quase tudo, pelo menos – que dá impressão de que cada cena dirigida por ele é como um presente para os amantes do grande cinema. E é assim que nos sentimos, mesmo tendo que passar por momentos tediosos e fora dos trilhos da segunda temporada da série, justamente por ter sido abandonada por ele durante um tempo.
TWIN PEAKS – A SÉRIE ORIGINAL
Rever a série original, além de se apaixonar de novo por Audrey, claro, é como visitar um lugar que você ama muito e que não cansa de revisitar. Principalmente o piloto, que eu já havia assistido várias vezes em uma cópia em VHS, e depois em cópias em DVD. È um trabalho que consegue unir ao mesmo tempo diversos gêneros – melodrama, história de detetive, suspense, terror, comédia etc. – e conseguir ser bem-sucedido em todos os aspectos. Foi uma revolução na época, algo que mudou para sempre a televisão, mas disso todo mundo já sabe.
O que teria, então, para acrescentar a uma série de que eu mesmo já falei aqui? Talvez apenas reforçar o quanto o piloto continua sendo a produção feita para a televisão mais impressionante de todos os tempos. Tantas cenas e tantos sentimentos e sensações ficam gravadas em nossa mente e nosso coração. A música maravilhosa de Angelo Badalamenti, o adorável e divertido Agente Dale Cooper (Kyle MacLachlan), o modo como aquela cidadezinha é introduzida aos poucos, com todo o mistério e toda a graça. As mulheres lindas da série (Sherilyn Fenn, Sheryl Lee, Mädchen Amick, Lara Flynn Boyle, Peggy Lipton), o mistério (que infelizmente teve que ser solucionado antes do tempo por causa da pressão da emissora), a ideia de um mundo alternativo que abriga entidades um tanto assustadoras, as inúmeras referências a vários clássicos do cinema. Tudo isso e muito mais fazem parte do encantamento da série.
David Lynch só dirigiu seis episódios para a série original, sendo que dois deles são o piloto e a series finale. E embora seja complicado deixar muita coisa nas mãos de diversos diretores claramente menos brilhantes, acompanhar a série, principalmente até o momento da revelação e do consequente fim do assassino de Laura Palmer, é muito bom. Por esses dias, graças à leitura de um livro sobre a série, acabei sabendo de detalhes de bastidores que me ajudaram a entender muita coisa que aconteceu ali, como as intervenções dos próprios atores para o andamento da trama, com o fato de Kyle MacLachlan não ter aceitado ser par de Audrey (Sherilyn Fenn) por achar que ela era uma colegial e isso não ia cair bem para ele. Ou que Sherilyn Fenn recusou usar fazer parte do concurso de Miss Twin Peaks por achar ridículo ficar ali de maiô, junto com as outras. São pequenas coisas que a gente percebe que vão modificando uma obra em aberto.
TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER (Twin Peaks – Fire Walk with Me)
Rever o filme desta vez, imediatamente após ver a série, me deu uma estranha sensação, pela primeira vez, de que se trata de uma obra quase redundante, algumas vezes. De todo modo, é possível ver de outra maneira, a cada vez que vemos certas cenas que já havíamos criado em nossa mente, através da série, materializadas ali, quando o tempo volta e somos convidados a adentrar novamente naquele universo. E dessa vez Lynch podia ser mais ousados na violência e incluir algumas cenas de nudez, inclusive de sua estrela Laura Palmer (Sheryl Lee).
Mas o que mais dá para admirar em TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER é a construção visual. Fico exatamente triste de não ter tido a chance de ver esta obra no cinema e ver agora em BluRay não muda essa falta. Acho que não chegou a passar nos cinemas da cidade, pois lembro de ter visto CORAÇÃO SELVAGEM (1990) no cinema e já nessa época era fã de Lynch. Deve ter tido uma distribuição pequena, não sei.
Há pelo menos duas cenas bem assustadoras, envolvendo o assassino Bob na casa dos Palmer. E uma delas surge para tornar aquilo que já havíamos achando extremamente perturbador na série ainda mais intenso: o fato de que estamos diante de uma história de abuso sexual envolvendo pai e filha. Isso é terrível. É quando o horror do sobrenatural perde espaço para o horror da vida real.
Mas o filme é também uma espécie de tentativa de Lynch de trazer paz para o espírito de Laura, levando-a para uma espécie de paraíso, com direito a um anjo protetor. Assim, é mais um filme sobre redenção de uma alma sofrida, como O HOMEM ELEFANTE (1980) também foi.
TWIN PEAKS – THE MISSING PIECES
Ter acesso ao material não incluso na versão para cinema de TWIN PEAKS – OS ÚLTIMOS DIAS DE LAURA PALMER é ter acesso a uma joia escondida. Embora seja uma obra incompleta, ela se torna completa à medida que a somamos com o que já conhecemos. Assim, a edição, feita na mesma ordem da narrativa do filme, faz dessas cenas deletadas uma obra à parte, com brilho próprio.
Algumas cenas são extremamente tocantes, como uma sequência simples de Norma (Peggy Lipton) e Big Ed (Everett McGill) na caminhonete. Naquele momento, ambos estavam procurando paz em um mundo que lhes negava, ou ao menos dificultava o amor. Também gosto muito da cena de Laura no porão da casa de Bobby (Dana Ashbrook), pedindo um pouco de cocaína. Ele percebe que ela não gosta de verdade dele, que está com ele por causa das drogas. É uma das mais bonitas humanizações do personagem. No filme, a cena é mostrada de maneira bem curta e pouco impactante.
THE MISSING PIECES é também a chance de rever alguns personagens que não tinham tanta relação com a história de Laura, mas que tinham bastante importância na série. Em separado, essas cenas são uma delícia de ver. Há, também, mais de David Bowie, o enigmático agente especial Phillip Jeffries. Aliás, é importante destacar que as cenas com Jeffries são o elo perdido entre a série e a nova revolução de Mr. Lynch. Sem falar que é também um trabalho que tem um compromisso maior em fazer conexão com o fim da série em 1991.
OS EXTRAS
São poucos os extras que merecem menção especial, e alguns deles já podiam ser vistos na edição em DVD de TWIN PEAKS. Vale destacar a descrição de Angelo Badalamenti do processo criativo de "Laura Palmer's Theme". Cheguei a ver algumas vezes e me peguei chorando de emoção com aquilo. No mínimo, arrepiante. Assim como também é arrepiante ouvir de Julee Cruise falando do quanto lhe era difícil cantar "Falling", como ficava sem energia, dada a carga intensa de emoção. Ah, dos depoimentos de atores, vale destacar o testemunho de Al Strobel de quando ele perdeu o braço. È no mínimo impressionante. O ator interpreta o misterioso Mike, o homem de um só braço que também habita o Black Lodge.
Do material inédito, o que vale destacar mesmo são duas entrevistas que o próprio Lynch faz com os Palmer: primeiro com os três reaparecendo envelhecidos e contando como estão no mundo dos vivos ou dos mortos. Em seguida, há a entrevista de fato com os atores, que se mostram extremamente gratos e ansiosos em trabalhar novamente com Lynch. Talvez naquele momento a ideia de um retorno já estivesse na mente do mestre.
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