sexta-feira, fevereiro 05, 2016

O REGRESSO (The Revenant)



Um dos possíveis significados de "revenant", do título original americano, é "pessoa que retorna como um espírito, depois da morte". E esse sentido se perde um pouco na tradução brasileira do novo filme de Alejandro G. Iñárritu, O REGRESSO (2015). O significado tem tudo a ver com o que ocorre com o herói vivido por Leonardo DiCaprio em sua jornada em busca de vingança. Em certo ponto do filme, ele até diz que já morreu. E a gente acredita. Assim como acreditamos na impressionante sequência envolvendo um urso cinza, que o ataca e o deixa às portas da morte. O ataque do urso, algumas vezes, tem a característica de um estupro, inclusive.

Neste momento, e antes disso também, a câmera dita as regras com sua dança admirável em torno dos personagens, do ambiente e da ação. A escalação do diretor de fotografia também mexicano Emmanuel Lubezki foi um acerto e tanto. Se em BIRDMAN OU (A INESPERADA VIRTUDE DA IGNORÂNCIA) (2014), o uso do plano sequência (algumas vezes falso) é admirável, os momentos de glória de seu trabalho em conjunto com Iñárritu se ampliam numa sequência que remete às cenas das trincheiras de GLÓRIA FEITA DE SANGUE, de Stanley Kubrick, ao deixar o espectador no meio da ação, quando a equipe de homens caçadores de animais para o comércio de peles é atacada por índios.

Embora a versão dos brancos da história seja a mais explorada, O REGRESSO também dá voz aos índios, que atravessam um momento triste de sua história, ao serem enganados, roubados, mortos, estuprados, raptados pelos brancos, sejam os americanos, sejam os franceses. Muito disso acontece por dois motivos: o fato de o filho de Hugh Glass (DiCaprio) ser mestiço, filho de uma índia, e também por vermos a tentativa de um grupo de índios de reaver uma índia capturada por brancos, em uma inversão de uma ação que remete a RASTROS DE ÓDIO, de John Ford.

Sexto longa-metragem de Iñárritu, O REGRESSO é um deslumbre em sua parte técnica, algumas vezes oferecendo momentos de contemplação, que funcionam como um respiro à ação, que tanto fere e nos deixa tensos, para mostrar a beleza daquele território, da natureza, e o quanto o homem é pequeno, embora também tenha características de monstro e ao mesmo tempo de herói ao adentrá-la e invadi-la com tanta audácia. Boa parte do mérito do filme está em ser construído em torno da condição de Glass de quase morto e do pouco tempo que tem para chorar pelo filho, quando precisa sobreviver àquilo tudo para vingar a sua morte. E a jornada é dolorosa e incrível.

Leonardo DiCaprio, depois de tantos filmes aparecendo como rapaz bonito e conquistador (talvez a exceção maior até então tenha sido em J.EDGAR, de Clint Eastwood), aqui aparece ferido, sujo, ensanguentado e barbudo, o que pode contribuir finalmente para sua premiação na noite do Oscar. E embora saibamos que o filme não é nenhuma unanimidade entre os críticos, sabemos que O REGRESSO é muito mais do que um filme feito para enaltecer a boa atuação de DiCaprio, assim como também de Tom Hardy, que interpreta o seu inimigo, o colega traidor e racista John Fitzgerald. Isso porque há todo um tratamento técnico e visual que torna o filme especial.

O que talvez falte a O REGRESSO seja uma maior capacidade de tocar o espectador com o drama de Glass, justamente por se ater tanto a preciosismos técnicos. Todo o drama de perder o filho ou de se comunicar com o espírito da esposa são vistos com certo distanciamento, ainda que com admiração. O que mais impacta é mesmo a construção de uma estética que privilegia a carne exposta e ferida de homens e animais, e do quanto tudo isso é mostrado com visceralidade, literalmente falando, inclusive.

Há uma série de coisas que contribuem para uma valorização maior do filme, como saber que Lubezki filmou todas as cenas com luz natural para atingir o máximo de realismo; as locações foram mesmo em locais bastante frios, como Canadá, norte dos Estados Unidos e sul da Argentina; a cena de DiCaprio comendo o fígado cru de um bisão foi de verdade, mesmo o ator sendo vegetariano; há detalhes sobre a verdadeira história de Glass que são ainda mais impressionantes do que o que é mostrado no filme.

Em premiações, as circunstâncias incomuns das filmagens podem ser atenuantes, como os doze anos de filmagem de BOYHOOD – DA INFÂNCIA À JUVENTUDE, para citar um caso do ano passado, mas no geral a crítica se atém ao que está na tela, à força das imagens e a sua capacidade de elevar o espectador, mexer com ele emocional ou mentalmente. Pode-se dizer que em O REGRESSO esse resultado nem sempre é satisfatório, pelo fato de o incômodo superar o prazer estético. Mas Iñárritu sempre foi mesmo um cineasta mais disposto a incomodar mesmo.

O REGRESSO foi indicado ao Oscar nas categorias de melhor filme, direção, ator (Leonardo DiCaprio), ator coadjuvante (Tom Hardy), fotografia, edição, figurino, maquiagem e cabelos, mixagem de som, edição de som, efeitos visuais e desenho de produção.

Nenhum comentário:

Postar um comentário