segunda-feira, abril 28, 2014
CÃES ERRANTES (Jiao You / Stray Dogs)
Um filme que, mesmo sendo exibido em circuito alternativo, faz quase metade do público desistir dele a partir de sua primeira meia hora de metragem, não dá para dizer que é uma obra fácil. E por isso é bom ir preparado para a sessão de CÃES ERRANTES (2013), uma experiência radical do cineasta malaio Tsai Ming Liang, conhecido por títulos como O RIO (1997), O BURACO (1998), GOODBYE, DRAGON INN (2003) e O SABOR DA MELANCIA (2005).
CÃES ERRANTES pode ser um filme também difícil para quem não conhece nada da poética do diretor. O que é normal em se tratando de outros autores: quanto mais se conhece a seu respeito através de seus filmes, mais é possível ficar íntimo de seu trabalho e de gostar e ter prazer com eles, mesmo quando a intenção é deixar o espectador incomodado.
Em tempos de imediatismo, fazer um filme como CÃES ERRANTES é nadar contra a corrente, é desafiar o espectador. Quem busca um filme pela história, então, é melhor escolher outro. Aqui, embora haja um fio narrativo, a história não chega a ser tão importante assim. Ou é importante dentro dos temas que o filme levanta, sendo que o maior deles talvez seja o sucateamento do ser humano no mundo moderno e a morte da arte. Ou do cinema.
O personagem principal é um homem que trabalha o dia inteiro segurando uma placa com o telefone de um condomínio de luxo. Esse trabalho humilhante, de fazer de um homem um objeto, quase uma parede em que é pregada uma placa, é bem representativo dessa falta de humanidade da sociedade contemporânea. Seu drama se soma ao fato de ter sido abandonado pela mulher e de ter que cuidar dos dois filhos pequenos, que passam o dia perambulando pelas ruas ou por um ambiente mais próximo da natureza.
Em determinado momento, vemos o protagonista levando essa placa nas costas, em um plano geral, como se estivesse carregando uma cruz. Seria um grande simbolismo católico se estivéssemos falando de um filme ocidental. Mas talvez seja isso mesmo, levando em consideração o fato de Taiwan ter sido invadido por tantos povos diferentes ao longo dos anos (portugueses, espanhóis, holandeses, japoneses). Inclusive, há um momento especial no filme, em que o protagonista canta uma espécie de hino de um povo perdedor, saqueado, enquanto lágrimas rolam no seu rosto, em meio à chuva, que parece nunca parar.
Quanto à morte da arte, isso é basicamente representado por uma cena envolvendo a mulher que entrará na vida do protagonista. Essa mulher, além de ter a intenção de cuidar das crianças, mora em um museu de arte abandonado. Há uma sequência em que ela aprecia um mural durante muitos minutos como se fosse um objeto alienígena. Mas, assim como a arte não é mais um produto sagrado do ponto de vista humano, ela urina olhando para o quadro, em seguida, num gesto de desrespeito. Essa cena contrastará com o longo plano-sequência final dos dois personagens imóveis.
Outro destaque do filme, embora acabe ficando em segundo plano diante de tantas cenas mais escuras, é o uso das cores em alguns momentos, como o vermelho, o azul e o amarelo, como se o diretor estivesse pintando seu filme, dando, pelo menos por alguns segundos, alguma cor para aquelas imagens lúgubres e naturalistas (há cenas de personagens comendo e fazendo necessidades fisiológicas ou de higiene). Como se fosse mais uma maneira de mostrar a queda do homem à posição de animal, como os escritores naturalistas costumavam mostrar.
Assim, quem não se incomodar em ver um filme hermético, angustiante, opressivo, algumas vezes estático, com ruídos pesados do tráfego e uma cena de canibalismo vegetariano (!), vai poder se dar ao luxo de respirar durante os planos longos de CÃES ERRANTES.
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