sábado, março 23, 2013
RÂNIA
Filmes como RÂNIA (2011), que têm uma cadência toda especial, com um ritmo mais lento, diferente do que se é acostumado a encontrar no cinema mais comercial, precisam, já desde o início, mostrar para o público o seu tom, para que esse espectador entre em sintonia com aquele estado de espírito almejado pelo diretor. No caso, pela diretora cearense.
Hoje, Roberta Marques se divide entre Fortaleza e Amsterdã. Ela realizou um filme universal, urbano, embora para os brasileiros e para os cearenses, em particular, seja possível identificar - ou se identificar com - os lugares, os sotaques, o modo de vida. Essa universalidade surge logo no início do filme, com a escolha não de uma música regional para a trilha sonora, mas de "Troubled Waters", uma bela e melancólica canção de um dos álbuns de versões da cantora norte-americana Cat Power. Quer dizer, não se trata apenas de um filme com um andamento mais lento: a melancolia também dá o tom.
Em certo momento, a jovem Rânia, vivida por Graziela Félix, diz que dança porque precisa afastar coisas ruins dentro de si, que só passam quando ela dança. E de fato a dança tem essa ligação com o presente, com o concentrar-se no agora, na respiração, no próprio corpo, que faz com que a amargura das memórias ruins e a ansiedade do futuro obscuro deem uma trégua para a alma sofrida.
Em RÂNIA, temos a história de uma adolescente que frequenta as aulas na escola pública de seu bairro, participa de aulas de dança, trabalha em um quiosque perto da praia, ajuda a mãe em casa. E ainda aceita a proposta da amiga mais velha Zizi (Nataly Rocha) de trabalhar à noite na boate de prostituição Sereia da Noite.
Sua intenção não é ingressar na prostituição ou nada do tipo, mas apenas dançar, ainda que o lugar não lhe seja o mais apropriado. Seu sonho de ser dançarina profissional se intensifica com a presença de Estela (Mariana Lima, de A BUSCA), uma coreógrafa recém-chegada à cidade. Estela representa a possibilidade, para Rânia, de sair daquela vida que parece predestinada: seu pai é pescador; sua mãe cuida do lar. A garota ambiciona mais, e isso é sentido também quando ela diz que sente algo dentro de si que não sabe se é medo ou coragem. Um sentimento que qualquer espectador, em certa altura de sua vida, já experimentou também.
Outro detalhe interessante do filme de Roberta Marques está nos diálogos dos personagens, por vezes parecendo improvisadas, algumas vezes até de difícil compreensão, o que é compreensível em se tratando de atores em sua maioria com pouca ou nenhuma experiência com interpretação. Essas falas mais realistas se revezam com as narrações em voice-over da protagonista, que por um lado apresentam um distanciamento maior da trama, mas, por outro, trazem uma dor maior, a dor de um narrador que já sabe o fim da história.
RÂNIA se mostra uma alternativa muito bem-vinda para quem deseja fugir um pouco da mesmice dos filmes mais comerciais e está disposto a experienciar a delicadeza desse universo feminino da diretora Roberta Marques.
Texto publicado originalmente no Caderno 3 do Diário do Nordeste, de 23.03.2013.
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