segunda-feira, julho 16, 2012

NA ESTRADA (On the Road)



Há uma tendência da crítica brasileira em geral em esnobar o trabalho de Walter Salles. Deve haver alguma razão para isso, embora o cineasta tenha alguns filmes muito bons no currículo, como TERRA ESTRANGEIRA (1996), CENTRAL DO BRASIL (1998), o renegado pelo próprio diretor ÁGUA NEGRA (2005) e agora este NA ESTRADA (2012), um filme que mostra a maturidade do cineasta. E uma vontade enorme de ser fiel ao espírito de uma obra de peso e importância como a de Jack Kerouac, que influenciou gerações e gerações. Se a obra cinematográfica captou ou não o espírito do romance autobiográfico do escritor, aí já é outra história, mas como objeto independente, pode-se dizer que NA ESTRADA é um belo filme.

NA ESTRADA é uma espécie de "filme-irmão" de DIÁRIOS DE MOTOCICLETA (2004), road movies com personagens transgressores, cada um à sua maneira. No filme, Sam Riley é Sal Paradise, na verdade o próprio Jack Kerouac. O papel mais importante do ator até então havia sido a interpretação impressionante de Ian Curtis em CONTROL, de Anton Corbijn. Logo no início do filme ele já começa a falar sobre a importância de ter conhecido Dean Moriarty (Garrett Hedlund). Do jeito que ele fala sobre Dean, nota-se um sentimento de fascinação por aquele jovem rapaz que exerce uma influência forte sobre todos ao seu redor. Amado tanto por sua amante Marylou (Kristen Stewart), quanto por seu amigo gay Carlo Marx (o poeta Allen Ginsberg, vivido por Tom Sturridge). Outro grande nome da geração beatnik que dá as caras em NA ESTRADA é William S. Burroughs, que também aparece com outro nome e que no filme é vivido por Viggo Mortensen.

Muito interessante perceber o quanto essa geração beat já era precursora da contracultura, do rock'n'roll. Até o jazz que era tocado freneticamente nos bares e que era acolhido pelos jovens era uma espécie de protótipo do rock. Assim, já dava para notar a inquietação dos jovens da época, coisa que Hollywood não estava preparada para mostrar, mas que os escritores daquela geração souberam registrar. O uso tanto da benzedrina, o primeiro tipo de anfetamina, tomada com café para ficar ligado, quanto da própria maconha, é bem explorado no filme.

Mas o mais interessante é o modo como o filme mostra os viajantes passando pelos quatro cantos dos Estados Unidos e até pelo México, sob sol, chuva e neve, sem dinheiro e sem luxo. Aliás, as personagens são mostradas com cabelos desgrenhados e sem maquiagem. Outras preocupações estavam em jogo, que eram principalmente experimentar, sugar ao máximo as experiências de vida, o sexo, as drogas, viver com pouco ou nenhum dinheiro e ainda assim procurar soluções de sobrevivência.

A maquiagem é usada em determinada cena por Marylou apenas para manter as aparências e conseguir um quarto num hotel. Depois disso, ela tira o batom. É como se isso a incomodasse. O despojamento é a lei; não importa ter muito dinheiro, apenas o suficiente para a gasolina, a comida e a bebida. Ou quem sabe um bom baseado. Como aquele enorme que eles encontram no México. Há também uma sede literária, que aparece com alguns personagens lendo "No Caminho de Swan", de Marcel Proust, ou "Orlando", de Virginia Woolf.

De Dean, vemos uma vontade quase desesperada de viver a vida da maneira mais louca possível. Nem sempre pronto para assumir responsabilidades, como ter um filho e uma esposa. Sal, por sua vez, quer participar, mas também dar uma de voyeur, já que toda a experiência é para ser transformada em livro. E quando falta comida e cigarro e papel para escrever o livro, ele cata papéis e cigarros do lixo, para que suas memórias e anotações sejam transpostas para o que viria a ser uma das obras mais importantes da geração beat.

A relação de amizade entre os dois personagens principais é bastante explorada. Kristen Stewart está melhor, mais desinibida, fazendo inclusive uma cena tão ou mais excitante do que muito filme erótico ou pornográfico por aí, graças ao caráter de fantasia sexual que ela carrega. Refiro-me à cena do carro. O sexo, aliás, é elemento de extrema importância e bastante valorizado ao longo do filme.

As imagens das paisagens são um respiro, mesmo em lugares menos aconchegantes como o México. A visão das montanhas é de encher os olhos. O filme aproveita praticamente toda a geografia do território americano. Tudo fotografado pelas lentes de Eric Gautier, o mesmo diretor de fotografia do já citado DIÁRIOS DE MOTOCICLETA e de NA NATUREZA SELVAGEM, de Sean Penn, para citar dois filmes que têm muito em comum. Perdemos a conta do número de cidades visitadas. Alguns momentos das viagens são particularmente tristes e belos, como a melancólica chegada a São Francisco, quando a câmera capta a dor de Marylou, ao cruzar a famosa ponte.

Com um elenco de apoio estelar, formado também por Kirsten Dunst, Amy Adams, Alice Braga, Steve Buscemi, Elizabeth Moss e Terrence Howard, NA ESTRADA é um filme claramente ambicioso. Entre erros e acertos, Salles consegue superar uma série de dificuldades e nos oferecer um painel de uma geração, de um livro, de um país, em um registro lento, mas com uma montagem ágil. Claro que deixou passar ou teve que cortar ou condensar inúmeras passagens do livro, mas isso é natural em adaptações.