quarta-feira, julho 09, 2008

À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA



Não imaginava que a minha reavaliação de À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA (1964) faria com que eu me tornasse fã do filme a ponto de finalmente vê-lo como a obra-prima que ele é. Definitivamente uma dos melhores obras de toda a história do cinema brasileiro. Digo isso com toda a sinceridade e cada momento do filme foi um prazer pra mim. Tinha visto uma vez em vhs e não tinha entrado no clima, mas dessa vez, vendo no dvd da Cinemagia, foi que eu percebi coisas que não tinha notado antes. E me vi muitas vezes admirado com as habilidades técnicas do trabalho, o uso inteligente da câmera, os enquadramentos, a narração, que lembra muito as histórias em quadrinhos de horror. Além de tudo, cheguei a me sentir quase que chocado com certas cenas, como aquela em que o Zé do Caixão corta os dedos de um sujeito no bar com uma garrafa quebrada, depois de uma aposta. O aspecto primitivo e ao mesmo tempo sofisticado do filme se misturam nas cenas que necessitam de efeitos especiais, como quando aparece um close dos olhos do Zé do Caixão, sempre que ele ataca uma vítima.

Lembro que da primeira vez que vi o filme, o que mais tinha ficado na minha memória foi a insistência de Zé em se mostrar superior às pessoas do vilarejo, que acreditavam em coisas que ele achava serem apenas crendices bestas como, por exemplo, sair de noite no dia dos Mortos ou não poder comer carne durante a Semana Santa, coisa que o Zé do Caixão fazia questão de comer na frente de todos e rindo diabolicamente. A primeira cena do filme é genial e lembra um pouco os trabalhos que William Castle fazia nos Estados Unidos. Mostra uma bruxa alertando os espectadores para não verem o filme, que saíssem enquanto é tempo. Depois vem aquele pequeno monólogo que lembra um pouco o Bela Lugosi nos filmes do Ed Wood, em que o Zé do Caixão diz: "O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da vida. O que é a existência? É a continuidade do sangue.". Porém, diferente dos diálogos nonsense de Lugosi em PLAN 9 FROM OUTER SPACE, esse pequeno monólogo, que foi a última cena filmada, com sobras de negativo, sintetiza não apenas o filme mas toda a trilogia do Zé do Caixão e sua busca pela mulher perfeita, que lhe dará um herdeiro. Ah, e não deixa de ser engraçado ver nos créditos iniciais os agradecimentos à funerária Bom Pastor. :)

Outra coisa agradável com a revisão de À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA foi poder retomar a leitura de MALDITO - A VIDA E O CINEMA DE JOSÉ MOJICA MARINS, O ZÉ DO CAIXÃO, o livro de André Barcinski e Ivan Finotti, que é tão gostoso de ler que dá vontade de ler todo de uma vez só, mas estou guardando pra ler aos pouquinhos, enquanto vejo os demais filmes que consegui do Mojica. Uma das minhas missões para essas férias é ver pelo menos dois filmes do Mojica, se possível três, durante esse mês de julho. Isso, como preparativo para a tão aguardada estréia de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO (2008), prometida para o mês de agosto. E como eu gosto de aproveitar tudo que o dvd tem, eu vejo todos os extras, por isso levo algum tempo degustando o dvd.

Nos extras, há depoimentos de Carlos Reichenbach, Branco Mello, Fernando Costa Netto, Ivan Cardoso e R.F.Luccheti. Carlão conta de como ele entrou no cinema fugindo da polícia (na época ele era um estudante lutando pela democracia em tempos de ditadura) e deu de cara com o primeiro filme do Zé do Caixão. Fernando Costa Netto, editor do jornal Notícias Populares, fala da participação de Mojica no jornal sensacionalista; O roteirista e quadrinista R.F. Luchetti fala da dificuldade de se fazer um personagem de terror essencialmente brasileiro, já que até os americanos copiavam as lendas dos ingleses e de outros países da Europa para fazer seus filmes, enquanto Mojica, de maneira genial, criou o Zé do Caixão, personagem bem brasileiro. Ivan Cardoso se mostra bem revoltado com o modo como o país discrimina o trabalho do Mojica, dizendo que só num país desgraçado como o Brasil, que os mestres só são valorizados depois de mortos, além de contar sobre o documentário que ele realizou sobre o cineasta e de como ele já era fã do Mojica bem antes de conhecê-lo pessoalmente. Já Branco Mello pareceu não ter muito a dizer e não entendi a sua inclusão, a não ser para mostrar o quanto ele é fã do trabalho do diretor. A entrevista do próprio Mojica é uma delícia e promete continuar nos dvds seguintes. Como se não bastasse, o dvd ainda conta com mais um monte de mimos, como comentários em áudio do Mojica, com poucas interferências e perguntas de Carlos Primati e Paulo Duarte, vários trailers originais, a enquete "Quem tem medo do Zé?", fazendo perguntas ao povo nas ruas para se ter uma idéia da popularidade do personagem nos dias de hoje, tem as palavras bonitas de Cid Vale do site Carcasse, a "aterrorizante" marchinha de carnaval que Mojica gravou em 1969 - vejam o quanto ele era popular na época - e um conto de terror para o programa Noise da 89 FM, que eu confesso que foi a única coisa que eu não tive paciência de escutar até o fim do dvd.

E os extras não param por aqui. Há ainda uma cena inédita, filmada em formato digital em 2002, de Zé do Caixão entrando com a gaiola e o passarinho na casa de Terezinha, recriando uma cena do filme original, mas que se mostrou bem inferior e desnecessária, apesar de curiosa. As imagens da operação dos olhos do Mojica me causaram náuseas e quase que estragaram o meu almoço. Muitas vezes tentava tirar os olhos da imagem e tentar me concentrar apenas no ótimo texto de Carlos Primati, entitulado "Os Olhos". Acho até que o texto seria melhor apreciado longe das imagens gosmentas e reais da cirurgia. Muito engraçada a cena de um dos primeiros filmes de Mojica, o curta REINO SANGRENTO (1952), graças principalmente aos comentários em áudio do próprio diretor. A qualidade da imagem, obviamente, está ruim, mas é possível ver tudo. E Mojica narrando as circunstâncias da realização desse curta e de sua mãe desmaiando na cena em que ele rola uma escadaria abaixo é hilariante. Os trechos dos primeiros filmes, A SINA DO AVENTUREIRO (1958) e MEU DESTINO EM SUAS MÃOS (1963), se revelaram bem interessantes. Nota-se que já havia ali uma habilidade inata de construir uma boa narração. Em A SINA DO AVENTUREIRO, inclusive, tem uma cena que funciona como uma espécie de ensaio para À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA, quando o anti-herói se vê assustado no meio da mata. Em MEU DESTINO EM SUAS MÃOS, apesar de ter sido desaprovado pelos padres e de não ter feito o sucesso que ele esperava, mostrava que Mojica, se quisesse, também poderia ter optado pelo melodrama, embora já houvesse cenas praticamente saídas do gênero horror, como a do próprio Mojica chegando bêbado em casa e espancando a mulher e botando o filho pequeno pra correr de casa, assustado. O uso das sombras e dos enquadramentos já se mostrava antecipador do que viria no primeiro filme do Zé do Caixão.

E eu gastei todas essas linhas e ainda nem falei do filme em si. Em À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA, Mojica interpreta um coveiro em uma cidade do interior que anda de preto, usa capa e cartola, tem um cavanhaque e se comporta de maneira totalmente diferente das demais pessoas do vilarejo. A primeira aparição dele na trama, no cemitério, já mostra isso. Ele aparece sozinho em cima de uma laje, enquanto um grupo de pessoas chora o enterro de um familiar. Ao chegar em casa, Zé já pede à mulher que lhe prepare uma carne pois o enterro lhe deu uma fome danada. A mulher tenta argumentar, dizendo que é Semana Santa e ele sai revoltado, à procura de carne para comer. Parece que no roteiro original, havia uma cena do próprio Zé matando o bicho, mas ela foi excluída da gravação. Melhor assim. Do jeito que ficou, compacto, com apenas 82 minutos, o filme me pareceu perfeito e não fica dando impressão de que haja buraco algum no roteiro. E não há mesmo. Bom, a perversidade de Mojica já começa a aparecer nessa primeira cena com a esposa, mas quando ele começa a matar quem ele quer, o filme vai ganhando um peso cada vez maior. E até certo momento, não há nenhuma interferência sobrenatural, a não ser da cigana, que já antecipa a morte de Antonio e a desgraça no inferno de Mojica.

Enfim, é tanta coisa para se falar sobre esse filme que é preferível não falar muito, mas como nem todo mundo vai ler o livro MALDITO, eu repasso aqui algumas informações que me deixaram impressionado e ao mesmo tempo fascinado e comovido. Mojica, quando estava com as latas do filme prontas e finalizadas, mas ainda sem conseguir distribuidor, já havia se separado da mulher, vendido a casa, os móveis e até a roupa do corpo, tudo pra concluir o filme. Acho isso fantástico. Ele nunca desistiu de seu sonho e chegou a fazer coisas que as pessoas considerariam uma loucura, mas ele confiava em seus instintos e tinha paixão pelo que fazia e a paixão leva o homem à loucura mesmo. Com o filme finalizado, Mojica encontrou um distribuidor bahiano e praticamente implorou para que ele visse pelo menos um trecho do seu filme. Naquela altura, ele estava sem comer há dois dias e, percebendo isso, o distribuidor pagou um lanche pra ele. O legal é que o combinado com o distribuidor é que ele veria apenas dez minutos do filme, o que representava um rolo. E quando o rolo acabou, as luzes se acenderam. O distribuidor ficou revoltado e perguntou porque acenderam as luzes. Ele queria ver o filme todo! Achou fantástico e disse que tinha certeza que o filme faria muito sucesso. E fez mesmo. Pena que Mojica estava tão endividado e necessitado de dinheiro que acabou vendendo o filme para um dos atores, que comprou por uma mixaria todas as cotas de participação e revendeu por um preço três vezes maior. Ao ver as longas filas que se formavam nas salas de cinema, Mojica bebia e chorava pelo dinheiro que poderia ter ganhado. No livro MALDITO, há ainda comparações bem interessantes entre as idéais de superioridade de Zé do Caixão com as idéias do filósofo Nietzsche.

A sofisticação visual, a montagem inovadora, a interpretação excelente do próprio Mojica, auxiliado por um dublador que deixava a voz de Mojica distante da voz de caipira do restante do pessoal da cidadezinha, e mais um monte de idéias fantásticas imaginadas por uma pessoa que não tinha muita instrução e que pulou a teoria e foi direto para a prática, tudo isso e muito mais faz de À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA uma obra única, original e revolucionária.

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