domingo, julho 27, 2008
A IDADE DO OURO (L'Age d'Or)
Dizem que a separação da parceria entre Luis Buñuel e Salvador Dali se deu por causa de Gala, a ciumenta esposa de Dali. Os dois haviam trabalhado juntos no revolucionário curta-metragem UM CÃO ANDALUZ (1929), mas que o ódio que Buñuel sentia por Gala era tanto que ele chegou até a tentar estrangulá-la uma vez de tanta raiva. E o interessante é que essa raiva está presente com força total em A IDADE DO OURO (1930), o primeiro longa-metragem de Buñuel. A raiva é mostrada no filme na figura do protagonista, um sujeito que adora matar inseto, chuta cachorro, cego, violino, dá uma tapa no rosto de uma mulher da alta sociedade só porque ela derramou um pouco de vinho em sua mão e chega a atirar com um rifle numa criança por ele estar tirando sarro com ele. O protagonista de A IDADE DO OURO está para a raiva assim como o louco de O ALUCINADO (1952) está para o ciúme. Mas como estamos falando de Luis Buñuel, sabe-se que a raiva ou o ciúme não são exatamente os temas principais de seu trabalho, embora no caso desse filme em especial, ela seja de fundamental importância.
O ano era 1930, um momento de transição do cinema mudo para o falado, razão pela qual o filme ainda possua alguns vícios do cinema mudo, inclusive, com direito a freqüentes intertítulos explicativos. Antes da fase mais "comercial", ainda que não menos brilhante das produções mexicanas, Luís Buñuel já havia mostrado o tipo de cinema que ele realmente gostaria de fazer em A IDADE DO OURO, que antecipa as "brincadeiras" que ele faria com mais tranqüilidade e liberdade em sua fase tardia, em obras mais abertas, no sentido de não se preocuparem tanto com um enredo, como A VIA LÁCTEA (1969) e O FANTASMA DA LIBERDADE (1974). Em A IDADE DO OURO, Buñuel exercitou essas liberdades num filme ousado, que não se furta em atacar a Igreja e a sociedade burguesa.
O prólogo do filme já é bastante intrigante, emulando um documentário sobre escorpiões, sua natureza pouco sociável e a preferência por lugares escuros. Logo depois, corte para a cena do protagonista vendo uma espécie de procissão liderada por grandes autoridades da Igreja, atravessando um lugar deserto. A impressão inicial, já sabendo a habitual mania de Buñuel de dar as suas alfinetadas na Igreja é de que haveria uma relação dos escorpiões com a Igreja, mas vendo o filme depois vemos que a comparação com os escorpiões é feita ao próprio protagonista, o cara que chuta cachorros e atira em criancinhas, acima mencionado.
Apesar de o filme funcionar mais como um veículo para as idéias malucas do cineasta espanhol, que de vez em quando tenta acordar a platéia com cenas como uma vaca deitada numa cama ou uma mulher chupando com volúpia o dedo de uma estátua, o filme possui um enredo, quase uma história de amor, ligando esse homem irascível a uma mulher da alta sociedade. Mas o caminho que leva os dois a se unirem é um pouco longo, muito por culpa do pavio curto do tal homem, que além de exercitar a sua raiva costumeiramente, também demonstra fortemente a sua libido. Há uma cena em que ele está sendo levado por dois policiais e passa por eles um cartaz com o desenho das pernas desnudas de uma moça, que ele faz questão de olhar o máximo de tempo possível. Essa obsessão de Buñuel pelas pernas femininas se tornaria famosa nas produções seguintes.
A IDADE DO OURO pode ser classificado como uma comédia, como, aliás, todos os outros filmes de Buñuel. Basta o espectador ter um pouco de senso de humor apurado para o tipo de humor que ele pratica. Em alguns momentos, esse humor chega a ser quase pastelão, como na cena do encontro entre os dois amantes, cada um colocando uma mão na boca do outro. A certa altura, os dedos da mão do homem já haviam sido comidos, para logo depois reaparecem. Parece um recurso de desenho animado, onde as coisas podem ser revertidas e as imagens na tela são anedóticas. Na cena, por exemplo, em que o protagonista joga fora de uma janela o Papa (ou um cardeal ou bispo, não saberia distinguir), trata-se de outro momento que faz lembrar alguns desenhos animados, que aliás são devedores das comédias mudas dos anos 1920.
No entanto, como se trata de Luis Buñuel, as piadas não são em vão e têm uma razão de ser. Alguns momentos são mais enigmáticos do que realmente engraçados, embora uma coisa não exclua a outra. Caso da seqüência da câmera virada de cabeça para baixo mostrando um homem morto deitado no chão. Ou da própria seqüência final, que faz rir até de Jesus. As heresias de Buñuel e sua relação com a Igreja se tornariam célebres com o tempo, mas parecia haver uma relação de amor e ódio com a instituição. Ao mesmo tempo em que ele era ateu (graças a Deus), ele tinha certo fascínio pela Igreja, seus dogmas, seus santos e sacrifícios. Mas o que fica mais presente em A IDADE DO OURO é a vontade de transgredir, de chocar, de pregar o seu anarquismo e o desprezo pela burguesia. O subversivo e o político andam lado a lado com o onírico. Por essas e outras é que Buñuel, ao mesmo tempo em que nos convida a viajar para um mundo de sonhos, faz também um convite à reflexão ao mundo em que vivemos. Um pé no sonho, outro na realidade.
Texto redigido por ocasião da oficina de Crítica de Cinema e ainda aguardando as observações do orientador, embora já tenha feito algumas correções.
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