domingo, julho 20, 2008
ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER
" - Gênio! Puta que pariu, esse cara é um gênio!"
(Glauber Rocha, aos berros, durante uma sessão de À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA num cinema do Rio de Janeiro.)
Depois do enorme sucesso de À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA (1964), José Mojica Marins conseguiu com bem mais facilidade financiamento para seu novo filme, a continuação ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER (1967). E isso é de imediato sentido na produção, bem mais caprichada. No entanto, eu diria que um dos problemas do filme e que o deixa um pouco abaixo de À MEIA-NOITE ... é a sua duração. Como havia mais dinheiro envolvido, resolveram fazer um filme mais longo, sendo que um dos méritos do anterior era o de ser compacto. O segundo filme da trilogia do Zé do Caixão sofre um pouco pelo excesso, especialmente no final, quando o personagem fica se repetindo, afirmando que não existe Deus, nem o diabo, nem espíritos, como no filme anterior. E o modo como ele "morre" (ele é como o Jason, morre, mas sempre dão um jeito de trazê-lo de volta) não foi dos mais inteligentes, embora seja bastante coerente com o que seria apresentado numa história em quadrinhos despretensiosa de terror. Agora, com relação às suas palavras finais, onde ele aparece dizendo que passaria a acreditar em Deus, soube que aquilo ali foi imposição da censura na época. Mojica falou que no final original, ele dizia que continuava sem acreditar em Deus e a Censura o obrigou a fazer essa modificação, que acabou deixando o filme com um final grotesco.
Desse modo, não me filio ao grupo dos que consideram ESTA NOITE ENCARNAREI NO TEU CADÁVER melhor que o anterior ou o melhor filme de Mojica. Acho o primeiro melhor. Mas claro que esse segundo trabalho é muito especial. O foco narrativo nunca é perdido e o filme tem uma fluidez impressionante. Achei que ia ver apenas metade do filme e veria o restante no dia seguinte, mas quando comecei a ver não consegui mais parar até chegar ao seu final, já de madrugada. Essa é uma característica - a fluidez e a leveza narrativa - mais comum de se ver no cinema americano. E com esse ESTA NOITE..., Mojica inicia uma nova abordagem, fazendo um filme com mais elementos de terror do que o anterior, inclusive com direito a uma seqüência do Zé do Caixão sendo levado por uma criatura toda preta para um inferno colorido e perturbador. Essa é a única seqüência filmada em cores do filme. E outra coisa que eu fiquei sabendo, ouvindo os comentários em áudio do diretor no dvd, foi que nessa seqüência, ele estava completamente bêbado. Isso por causa da morte de uma pessoa da equipe. Ele conta que o sujeito falou pra ele, algo assim: "Mojica, estamos chegando ao final das filmagens e estranhamente até agora não morreu ninguém. Será que não vai morrer ninguém?" (Não lembrava que no filme anterior havia morrido gente). Aí o Mojica diz: "Vai morrer sim, é você quem vai morrer.", com um misto de brincadeira e irritação. E o pior é que o cara morreu mesmo!! Hoje ele conta que foi uma infeliz coincidência mas que ele sofreu muito com isso. Porém, depois de saber dessa história, passo a pensar duas vezes antes de fazer brincadeira com as pragas do Zé do Caixão. Na verdade, eu acredito que o sujeito ficou tão impressionado com o que o Mojica falou que ele mesmo provocou a própria morte, já que foi encontrado álcool no sangue dele, na necrópsia. E parece que ele estava tomando um medicamento na época que o impossibilitava de beber álcool. Outra coisa curiosa, ainda com relação a essa seqüência do inferno - que se feita hoje, com certeza seria muito mais sangrenta -, é que ela foi toda filmada durante a Semana Santa. Porém, o resultado do inferno de Mojica foi um sucesso e com o seu jeitão lisérgico, Mojica entrou em sintonia com o próprio espírito do ano de 1967, o mais psicodélico do século.
Há outras histórias curiosas sobre o filme e a mais divertida delas talvez seja a difícil tarefa de fazer a seqüência das aranhas. Mas antes, falemos um pouco do enredo do filme. A estória começa exatamente onde termina À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA, quando Zé é atacado pelos espíritos vingativos. Quando o filme terminou, imaginou-se que ele havia morrido, mas ele não só não morreu, como ainda voltou do hospital equipado com uma câmara de torturas e um ajudante corcunda, bem típico dos filmes de terror da Universal, por exemplo. E a sua missão continua: encontrar a mulher perfeita. Na sua visão distorcida, a mulher perfeita teria que enfrentar o medo corajosamente. E ele seqüestra uma meia dúzia de mulheres da vila. É aí que entram as aranhas que eu ia começar a falar no começo do parágrafo. Elas passam por debaixo da porta e cobrem o corpo das meninas enquanto elas estão dormindo, de baby-doll - de preferência com as coxas de fora. É uma cena relativamente longa e não deixa de ser impressionante o fato daquelas mulheres terem suportado aquela tortura naquela seqüência. Mojica contou que teve que demitir um grupo de mulheres no começo das filmagens que abandonaram o filme por causa dessa cena e por isso ele acabou pertendo um bocado de fita. O curioso é o modo como ele conseguiu com que as aranhas andassem: com um ventilador. Elas foram empurradas pelo vento. No livro MALDITO, essa história é contada com mais detalhes. Se eu falar mais, o texto vai ficar enorme. Mojica, no áudio, não conta do trabalho que foi carregar essas centenas de aranhas caranguejeiras. Com o balançado do carro, elas começaram a sair das caixas e os assistentes do diretor ficaram com medo. O motorista chegou até a perder a direção do carro por causa delas. Bom, e ainda tem a história das cobras, das mais variadas espécies, também usadas nas coitadas das atrizes. Mas a história das aranhas é mais divertida. :)
Ainda no quesito diversão de bastidores, teve o caso da atriz que ia interpretar a mulher perfeita. Acontece que a menina era cheia de ataques de estrelismo. Além de ter sumido por quatro dias, atrasando as filmagens, ela fazia coisas que deixavam a equipe inteira louca de raiva. Desde dizer que ia se jogar de cima do prédio até a ficar procurando dificuldade para fazer cenas simples. Mas o principal problema para Mojica era encarar o mau hálito da menina. O mau hálito era tão forte que Mojica chamou outra pessoa para fazer a cena do beijo, filmada em super-close para disfarçar. Há outras histórias engraçadas envolvendo essa menina, mas eu deixo para incentivar os leitores do blog a comprarem o livro MALDITO, delícia de leitura e pura diversão. Mas no final do comentário em áudio, Mojica também conta o que aconteceu no final com essa menina, que era tão má atriz que na cena em que ela estava passando mal por causa de um aborto, Mojica teve que ficar apertando o dedo dos pés dela com alicate para que ela fizesse cara de que estava sentindo dor. Bom, não deixa de ser chato ver um diretor falando mal de uma atriz, mas por outro lado, a história é divertida. :)
Falemos dos extras. Entre os trailers, destaco o engraçadíssimo trailer de AS MULHERES DO SEXO VIOLENTO (1978), de Francisco Cavalcanti. Os outros são normais, mas esse tem uma carga de exploitation tão forte que começa a partir do título ridículo que o filme tem, mas que ao mesmo tempo traz duas palavras que atraem o espectador comum. Curiosamente, no livro MALDITO, tanto Mojica quanto Ozualdo Candeias aparecem como diretores não-creditados desse filme. Há ainda a continuação da enquete "Quem tem medo do Zé?" e novamente a excelente descrição do filme em questão por Cid Vale do site Carcasse. E dessa vez eu tive paciência de ouvir a estória que Mojica conta na rádio 89 FM, chamada "Onde Está Verônica?". E realmente o clima é assustador e ele sabe como criar um suspense, apesar de a gente já imaginar o final. Há também à disposição, o tema do programa Cine Trash, da banda Nightmare Team. É um heavy metal convencional. Quanto aos textos disponíveis, nada de novo em relação ao dvd anterior, a não ser um artigo que nem dá pra ler, com uma letrinha tão miúda. O texto se chama "Os Medos". O mesmo se pode dizer dos cartazes e quadrinhos. Aliás, é uma tarefa impossível ler aqueles quadrinhos na televisão. A não ser com o uso do zoom. Quem sabe no computador...E tem outros extras divertidos, mas vamos logos às entrevistas.
As entrevistas sempre são sempre por onde eu começo a ver os dvds. Dessa vez, os entrevistados são: Rogério Brandão, produtor e diretor de tv, produtor do Cine Trash, na Bandeirantes, apresentado pelo Zé do Caixão nos anos 90, quando ele teve a oportunidade de ser apresentado a um público novo, já que os filmes de terror passavam às 3 da tarde; Otávio Muller, ator, disse que tem inveja de não ter vivido nos anos 60,70, no auge do Zé do Caixão e de vários cineastas que estavam no auge, tanto do Cinema Novo como do Cinema Marginal; Paulo Sacramento, diretor, veio com o depoimento mais interessante do dvd, pois Sacramento apresenta antecipadamente o roteiro encadernado de ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO (2008), com direito a desenhos e idéias para o filme. O novo filme deve muito a Sacramento e a Dennison Ramalho para o ressurgimento para as novas gerações do Zé do Caixão e do tão sonhado e maldito último filme da trilogia do Zé. Há ainda: Mário Lima, ator e produtor, que participou praticamente de todos os filmes de Zé do Caixão, tendo inclusive dirigido uns filmes estrelados pelo Mojica e que encara o diretor como amigo e mestre na arte cênica; Rubens Francisco Lucchetti, escritor e quadrinistra, que já havia comentado nos extras de À MEIA-NOITE... Lucchetti fala de outros projetos menos conhecidos que ele fez em parceria com Mojica, como fotonovelas, por exemplo. Inclusive, seria uma boa que, agora que o Zé do Caixão está de volta, alguns desses trabalhos de Lucchetti com o Zé fossem relançados em acabamento de luxo. Acho que tem público interessado. No final, há o depoimento de Aldenoura de Sá Porto, escritora e roteirista do filme, que contribuiu principalmente com os diálogos.
Deixo por último minhas impressões sobre o principal extra do dvd: o documentário em curta-metragem O UNIVERSO DE MOJICA MARINS (1978), de Ivan Cardoso. Fiquei positivamente surpreso com o discurso de Mojica, que na época não tinha ainda pegado essa mania de falar a palavra "realmente" em toda frase. Pelo contrário, ele me pareceu tão lúcido e inteligente em suas argumentações que deixaria no chinelo muito intelectual da época. Ele mesmo, com humildade, se auto-denomina de analfabeto e acredita que a criação do Caixão é a sua missão nesse mundo, e que os seus filmes devem ajudar muita gente que se acha, no fundo, uma pessoa perturbada, e que vai ver o filme e tem uma espécie de libertação. Não deixa de ter alguma lógica isso que ele falou. O documentário começa de maneira bem interessante, mostrando a mãe de Mojica, que afirma: "meu filho não é o Zé do Caixão, meu filho não é perverso, meu filho é o José Mojica Marins". E como o próprio Ivan Cardoso já havia dito em seu depoimento constante dos extras do dvd de À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA, isso meio que desmistifica a figura do Zé do Caixão. No mais, achei genial a inclusão da canção "Quero que vá tudo para o inferno", de Roberto e Eramos Carlos, no curta.
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