sábado, outubro 20, 2007

A HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN (Histoire de Marie et Julien)



Não me lembro quanto tempo faz que eu assisti A BELA INTRIGANTE (1991) no cinema. Acho que foi em 1992, numa pequena mostra de sete filmes que fizeram sucesso na edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo daquele ano. Infelizmente, essa foi a única iniciativa que os organizadores dos cinemas daqui um dia fizeram. E eu estive nessa sessão única desse filme de Jacques Rivette no hoje extinto Studio Beira-Mar, que era uma pequena e simpática sala de cinema dedicada a filmes mais alternativos e que acabou fechando com a chegada das duas salas do Espaço Unibanco. Lembro que A BELA INTRIGANTE, por ter cerca de quatro horas de duração, ofereceu aos espectadores um intervalo de cinco a dez minutos para que eles fossem ao banheiro, ou comprassem alguma bebida ou apenas para esticar as pernas. Mas essas quatro horas foram como duas, de tão agradáveis que foram, principalmente pelo fato de estar contemplando a nudez de Emmanuelle Beàrt quase que o filme inteiro.

A HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN (2003) é a volta da parceria de Rivette com Emmanuelle Beàrt, doze anos depois. Dessa vez, numa história de fantasmas. Aliás, Rivette não gosta da palavra "fantasma", como se pode ver na entrevista de 40 minutos que vem no dvd importado (americano, canadense?). Ele prefere chamar os personagens não vivos de espíritos. Segundo ele, espíritos são aqueles seres que ficam entre os dois mundos, o carnal e o espiritual. Pois bem, trata-se de uma história de espíritos, de um homem que se apaixona por um espírito. Mas um espírito tão carnal quanto qualquer um de nós, com os mesmos desejos e necessidades físicas. Acredito que esse tipo de abordagem é inédita no cinema, mas posso estar enganado.

O filme se divide em quatro capítulos: 1. Julien; 2. Julien e Marie; 3. Marie e Julien; e 4. Marie. Aos poucos, o ponto de vista do filme, vai passando de Julien (o polonês Jerzy Radziwilowicz) para Marie, à medida em que os mistérios vão sendo solucionados. Tem uma seqüência em especial que eu achei puramente lynchiana. Como se o cineasta americano tivesse incorporado em Rivette. Trata-se da cena de um sonho, em que Marie conversa com uma mulher morta. A mulher, depois de falar com ela de maneira enigmática, despede-se com as mãos se cruzando sobre o rosto, algo que me lembrou bastante certos filmes de Lynch. Porém, na entrevista que compõe o dvd, Rivette comentou que buscou inspiração nas seqüências de sonho em Buñuel.

A intrigante trama de A HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN envolve um homem (Julien) que chantageia uma mulher que se autodenomina Madame X (Anne Brochet) e que quer de volta alguns objetos. Julien, sabendo o quanto essa mulher deseja tais objetos, pede uma fortuna em dinheiro. Certo dia, ele encontra Marie (Beàrt) e os dois sentem uma conexão forte entre um e outro. Eles voltam a se encontrar e ele pede para que ela passe a morar com ele numa casa enorme e meio abandonada pela ausência de uma mulher. Ele, obcecado pelo seu ofício de relojoeiro, não tem muito tempo nem vontade de arrumar a bagunça. Antes da chegada de Marie, sua única companhia era um gato preto chamado "Nevermore", como no famoso poema "O Corvo", de Edgar Allan Poe.

Desde o início, o filme guarda uma estranheza bastante agradável. Aliás, essa sensação agradável de prazer estético, de sentir que estamos vendo algo especial, acontece sempre quando vemos um filme de um diretor de primeira grandeza como Rivette. E no caso de A HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN, mesmo quando o filme vai descortinando sua verdadeira face, o encanto e o mistério continua. Engraçado que eu tinha a impressão que o filme seria mais erótico, mas o aspecto carnal do filme é quase nulo, estando mais para o espiritual. Basta notar que na cena em que Marie e Julien estão na cama, um de seus maiores prazeres é ficarem contando fantasias, criando com a ajuda do outro fantasias eróticas, como se mentalização desses pensamentos fosse mais importante que o próprio ato sexual, que é pouco mostrado, omitido pelas elipses à Bresson.

Outra coisa que eu constatei durante a entrevista de quinze minutos da Emmanuelle Beàrt é o quanto ela é inteligente e interessante. Arriscaria generalizar uma comparação com as atrizes americanas, que geralmente não têm muito a dizer. Elas falam meia hora e não dizem nada. Por isso que sempre prefiro entrevistas com diretores; atores e atrizes não são tão interessantes intelectualmente. Mas talvez pela própria natureza dos franceses de estudarem, de filosofarem, de serem os grandes teóricos do cinema, as atrizes francesas talvez sejam também interessantíssimas entrevistadas. Confesso que me surpreendi com a inteligência e a sensibilidade de Beàrt, que além de falar de aspectos mais profundos do seu papel e da espiritualidade, conta que Rivette a deixava de propósito totalmente perdida e de ter se sentido como "carne" - nem quando ela teve que ficar o tempo inteiro nua em A BELA INTRIGANTE ela se sentiu assim. No começo das filmagens, inclusive, ela nem sabia que tipo de personagem ela era, já que o roteiro ia sendo entregue aos poucos durante o processo de realização.

A HISTÓRIA DE MARIE E JULIEN continua inédito comercialmente no Brasil.

Agradecimentos especiais ao amigo Milton do Prado, que me deu de presente uma cópia desse maravilhoso filme.

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