sexta-feira, outubro 08, 2021

UM TIRO NA NOITE (Blow Out)



“When I’m making a film, nothing else matters to me. The outside world no longer exists. I have only one obsession: to realize the project that is in my head. I no longer pay any attention to my wife or my children and sometimes I’ve lost everything because of it.”
(Brian De Palma)


É interessante ver esse depoimento do De Palma, mesmo sabendo que isso deve ser a realidade de outros tantos realizadores. A obsessão pelo trabalho a tal ponto que a vida familiar acaba prejudicada. No caso de UM TIRO NA NOITE (1981), Jack, o personagem de John Travolta, fica tão obcecado pelo caso do acidente/assassinato do governador, que ele vive deixando para depois o próprio trabalho. No caso, é bem compreensível. Afinal, há uma questão tão mais urgente no ar, uma gravação que pode ser uma prova do assassinato, mas também acaba o deixando cego para a possibilidade de que a própria garota por quem ele está interessado (Nancy Allen) corre sério perigo.

UM TIRO NA NOITE é a quarta e última parceria de Brian De Palma com Nancy Allen (o casamento dos dois acabaria logo após) e também a quarta (mais não última) parceria com o maestro Pino Donaggio, sempre fazendo um trabalho maravilhoso, unindo uma trilha de suspense com algo mais romântico. O filme sempre ficou em meu pódio (ou pelo menos no top 3) dentre os trabalhos do diretor (isso poderá mudar, talvez, com essa peregrinação). A experiência de tê-lo visto, mesmo na televisão, na adolescência, já foi bem marcante. Depois em 2004, em DVD, isso se ampliou. E agora vejo em BluRay, em alta definição, uma perfeição!

O filme parece uma fusão de BLOW-UP – DEPOIS DAQUELE BEIJO, de Michelangelo Antonioni, com A CONVERSAÇÃO, de Francis Ford Coppola. Aqui o cineasta, talvez incomodado com a recepção crítica não muito acolhedora a seu VESTIDA PARA MATAR (1980), resolve fazer uma obra mais séria, por assim dizer. Na trama, John Travolta é um sonoplasta de filmes B de terror que grava sons da natureza à noite quando testemunha um acidente automobilístico e salva uma garota de dentro do carro, que cai em um riacho.

Posso estar errado, mas percebo neste filme um uso mais discreto de seu virtuosismo com a movimentação da câmera, mas há sobreposições e aproximações que lembram os gialli. Dos gialli também há a beleza atrelada à tragédia, à violência. A cena dos fogos de artifício dificilmente sai de nossa lembrança.

Uma coisa que é sempre bom considerar quando podemos nos dar ao luxo de ver toda a filmografia de Brian De Palma é perceber que toda ela está conectada. Não se trata simplesmente de dividir em dois, três ou quatro períodos; ou dividir entre filmes maneiristas e não maneiristas; ou entre comédias ou suspense. No caso de UM TIRO NA NOITE, por exemplo, podemos buscar uma referência lá no começo da carreira, em QUEM ANDA CANTANDO NOSSAS MULHERES (1968).

Nesse filme, o personagem de Gerrit Graham é um sujeito obcecado por teorias de conspiração sobre o assassinato de John F. Kennedy e desenha sua linha de raciocínio no corpo nu de uma mulher. Em UM TIRO NA NOITE, quando Jack põe Sally para encontrar o reportar, colocando escuta nela, mesmo sem saber que ela vai se encontrar na verdade com um assassino serial (John Lithgow), ele está colocando um alvo na moça.

UM TIRO NA NOITE também lida com os duplos malignos habituais dos filmes do diretor. No caso, eles seriam o fotógrafo (Dennis Franz) e o homem que atirou no pneu com o rifle (Lithgow). Os três estavam no mesmo lugar no momento do tiro. Jack, no entanto, se apresenta diferente dos dois pela inocência e por querer a verdade. Divulgar o que realmente aconteceu é o mais importante. E ver Jack fazendo cinema, ao unir fotografia com som, é mágico e fascinante.

Quanto às relações já habituais com os filmes de Alfred Hitchcock, temos pelo menos dois momentos que aproximam UM TIRO NA NOITE com UM CORPO QUE CAI. Tanto Jack quanto Scottie (James Stewart) salvam uma mulher das águas e a acolhem na cama, carinhosamente. Além do mais, ambos se sentem traídos quando descobrem que a mesma mulher agiu de maneira pouco nobre sem que eles soubessem. No caso de Sally, ela havia sido paga para estar com o governador e depois gerar um escândalo, como já havia feito com outros homens da alta sociedade. Assim, há um tipo de moralismo incômodo em ambos os heróis.

E há também algo de estranho com a falta de interesse em sexo por parte de Jack. Diferente do fotógrafo, que tenta forçar sexo com Nancy, ou do assassino que fica extasiado em estrangular as mulheres, o herói da história parece um sujeito que está sempre se reprimindo. Douglas Keesey, o autor do livro Brian De Palma’s Split-Screen, até vê na cena em que Jack usa o picador de gelo para matar o estrangulador, como se ele estivesse matando a si mesmo, ou o seu lado maligno. Poderia ser também uma forma de autopunição por não ter conseguido chegar a tempo de salvar Sally. E o que seriam os fogos de artifício dentro dessa representação sexual meio freudiana? Talvez uma espécie de gozo. Mas não seria estranho um gozo depois do que aconteceu? O autor do livro vê isso como uma resposta ao que Hitchcock fez em LADRÃO DE CASACA, na cena dos fogos de artifício no momento do abraço entre Cary Grant e Grace Kelly.

Infelizmente UM TIRO NA NOITE não foi bem de bilheteria. Custou 18 milhões de dólares e faturou apenas 8 milhões. Além do mais, a maior parte da crítica não foi favorável ao filme. Dos críticos mais famosos, quem elogiou e enalteceu foi Pauline Kael. Mesmo assim, foi mais uma decepção para De Palma, que já havia sido incompreendido em VESTIDA PARA MATAR e quis fazer uma obra bem mais sóbria. Muito provavelmente, a resposta a tudo isso seria o banho de sangue e violência em SCARFACE (1983), mas ainda não sei o quanto isso foi uma resposta voluntária ou não.

+ DOIS FILMES

HUNTED

A princípio podemos ver HUNTED (2020) como um filme-irmão de SOZINHA, de John Hyams, mas o que o filme de Hyams tem de riqueza visual e narrativa, mesmo lidando com uma trama simples, este exemplar belga perde bastante na comparação, por mais que o começo seja bem tenso, com a protagonista sendo capturada por dois maníacos para ser usada como vítima em vídeos doentios que eles geram. A simplicidade também está na geografia, com a história basicamente toda se passando no meio de uma floresta. Vejo como problemático o vilão da história não ser suficientemente assustador ou odioso. Ainda asim, é um filme eficiente e que entretém em uma duração relativamente curta. O curioso é que o diretor Vincent Paronnaud é o parceiro de Marjanie Satrapi em PERSÉPOLIS (2007) e FRANGO COM AMEIXAS (2011).

DNA (ADN)

Mesmo sem saber nada a respeito dos bastidores e das motivações que levaram Maïwenn a interpretar a si mesma em busca de suas origens, dentro de uma estrutura familiar complexa, a impressão que fica é que este talvez seja o seu filme mais pessoal como diretora. DNA (2020) começa fascinante, primeiramente ao mostrar o apego da família ao velho patriarca, que vive em uma casa de repouso e já não compreende muita coisa e mal fala. O fascínio vem com sua morte, os efeitos que ela traz na família e os preparativos para o enterro, mostrados de maneira lenta, destacando a falta de sintonia da família até na hora de escolher um caixão que será cremado. Em seguida, o foco do filme vai cada vez mais para a personagem de Maïwenn, com Fanny Ardant no papel da mãe pouco amada, Louis Garrel como o irmão divertido e Marine Vacth como a irmã com quem a protagonista não se dá muito bem. Há ainda a figura do pai pouco presente. Se não fosse o final apressado e que tira muito do impacto poético que poderia ter, DNA seria um dos melhores filmes franceses dos últimos anos.

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