domingo, março 24, 2024

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS



Na noite de ontem, fomos, eu e a Giselle, (re)ver DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS (1976) no Cineteatro São Luiz. E foi muito bom irmos até lá, desde a chegada ao local, apesar de vermos a tristeza que está a Praça do Ferreira como um espaço de explicitação de nossa miséria socioeconômica atual. O tempo estava nublado e ameaçando chover, e talvez por isso a organização do espaço tenha deixado as pessoas que estavam dispostas a assistir ao filme naquela sessão especial gratuita (incrivelmente um público pequeno) entrarem meia hora antes do início da projeção.

Lá dentro, tiramos umas fotos e fomos entrevistados por uma moça para uma pesquisa de satisfação do equipamento do Estado. Eu falei a ela do que não gostava, mas, logo que entrei, mesmo as coisas de que reclamei ficaram pequenas diante de minha satisfação de estar ali naquele lugar lindo. Os produtores Luiz Carlos Barreto e Lucy Barreto não puderam comparecer à homenagem que receberiam por um problema de indisposição do hoje lendário produtor. O filme começa e já começamos a ver com muito interesse e deleite.

DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS é um dos maiores sucessos do cinema brasileiro. Não me refiro apenas ao público – por décadas foi a nossa maior bilheteria de todos os tempos –, mas também ao fato de que a crítica o tem como uma obra muito querida. A Abraccine, em votação para o livro 100 Melhores Filmes Brasileiros, o colocou na 39ª posição. Já no mais recente livro Cinema Fantástico Brasileiro – 100 Filmes Essenciais, o filme de Bruno Barreto aparece na 13ª posição. Além do mais, Jorge Amado, autor do romance de 1966 que deu origem a esta adaptação, adorou o filme do jovem realizador – Barreto tinha apenas 21 anos quando lançou DONA FLOR e o mais incrível é que já era o seu terceiro longa-metragem.

Sônia Braga está incrível como a doce Flor, a mulher que é um tanto dependente do amor que sente pelo marido Vadinho, um homem irresponsável, que não trabalha, gasta o dinheiro da mulher em jogo, e até bate nela para conseguir dinheiro, numa cena desconfortável, mas não tanto quanto a mostrada na versão dirigida por Pedro Vasconcelos em 2017. Tanto que nem me lembrava dessa cena de agressão. No filme de Barreto, o Vadinho interpretado brilhantemente por José Wilker é visto de maneira mais simpática e moleque, ainda que ganhe dimensões mais sombrias e ambíguas especialmente quando aparece como um espírito ainda louco para satisfazer seu apetite sexual pelo corpo de Flor, que o teria chamado.

Sônia, a intérprete maior das personagens femininas de Jorge Amado no cinema (faria ainda GABRIELA, de 1983, também de Barreto, e TIETA DO AGRESTE, de Cacá Diegues), lida com esse desejo intenso por sexo com a frustração, seja quando tem que aturar as irresponsabilidades do marido boêmio, seja quando se casa com um homem que não corresponde às suas vontades na cama, ainda que a trate com muito respeito, o farmacêutico Teodoro, vivido por Mauro Mendonça. A direção sabe aproveitar muito bem todos esses aspectos de Flor, de maneira muito elegante. Uma cena de que gosto muito é uma que a flagra nua, sozinha, deitada na cama; com a janela da casa aberta, a câmera a larga lá, em estado de luto, mas cheia daquela falta que lhe queima por dentro. Além do mais, a última cena do flashback de Vadinho é cheia desse calor intenso e a fotografia (de Murilo Salles) usa tons avermelhados para enfatizar algo de natureza infernal (no bom sentido, talvez?) na intensidade do desejo do casal.

DONA FLOR é um dos casos raros de filme que deixa muitas lembranças, mesmo passados muitos anos – eu devo ter visto pela última vez nos anos 1990. Ainda assim, fiquei surpreso ao ver coisas que haviam caído no arquivo morto de minha memória, como a visita de Flor a uma mulher que ela acredita ter tido um filho de seu marido. O prólogo, com a morte de Vadinho no carnaval, seguido dos créditos iniciais ao som de Simone cantando "O Que Será?", composta por Chico Buarque exclusivamente para a trilha, já esse início arrepiante é o suficiente para deixar uma grande expectativa para o que virá. Além do mais, Francis Hime faz uma orquestração magnífica a partir da canção, elevando o filme com muita sensibilidade.

Caso perfeito de clássico, o filme de Barreto é tão lembrado que até quem nunca o viu sabe do que se trata, ou lembra de alguma cena ou imagem; é uma obra que ingressou no inconsciente coletivo.

O aspecto fantástico ganha ainda mais força nos dias de hoje, já que não é mais tão eclipsado pelo erotismo (na minha memória, as cenas de sexo eram mais tórridas, mas as vi pela primeira vez muito jovem). Ainda assim, é bem ousado para os padrões da época e para um cinema produzido fora da Boca do Lixo e com um elenco de astros de primeira grandeza (até o elenco de apoio é incrível). Adoro o final, com a decisão de Flor de se sentir finalmente completa com os dois maridos. Talvez seja sobre isso o filme: a busca de completude.

+ DOIS FILMES

NOSSO LAR 2 – OS MENSAGEIROS

Esta sequência de NOSSO LAR (2010) usa o que foi apresentado no primeiro filme a fim de introduzir o ponto de vista dos mensageiros na história de aprendizado, queda e superação de espíritos que descem novamente à Terra. NOSSO LAR 2 – OS MENSAGEIROS (2024), de Wagner de Assis, tem até uma narração que dá um ar mais doutrinador, em comparação com o primeiro, que parecia mais um filme de ficção científica, e por isso era divertido até para não seguidores da doutrina espírita. Incomodou-me um pouco a música que acompanha algumas cenas, especialmente as que mostram o aspecto de perfeição da cidade celestial. Por outro lado, é interessante como às vezes o filme se apropria de elementos do cinema de horror para apresentar a decadência dos espíritos. A própria cena de um dos homens que assiste ao próprio funeral poderia assustar a espectadores da década de 1960, por exemplo. Minha cena favorita é uma em que os mensageiros lutam contra as forças sombrias pelo espírito de um homem.

MINHA IRMÃ E EU

Este filme foi me ganhando aos poucos. Se, no início, eu demorei a embarcar no humor de Ingrid Guimarães e Tatá Werneck, quando se transforma num road movie, o novo trabalho de Susana Garcia (MINHA MÃE É UMA PEÇA 3 - O FILME, 2019) é só alegria, com a química entre as duas atrizes funcionando perfeitamente. Na trama, duas irmãs, depois de terem deixado claro que não queriam cuidar da mãe (Arlete Salles), saem numa viagem em busca da genitora magoada. No meio disso tudo, há a brincadeira com as mentiras da personagem de Werneck, cheia de trambiques, e isso acaba gerando boas situações, como o encontro com o caubói do touro. MINHA IRMÃ E EU (2023) é um tipo de comédia que poderia render um bom público se as pessoas voltassem a frequentar os cinemas. A experiência coletiva na sala foi muito boa, com o público rindo e gargalhando a valer. Ou seja, se temos tradição com a comédia, um bom boca a boca pode ajudar a reconquistar a audiência perdida, nesses tempos em que, até no cinema, vemos propaganda de filmes que estão em cartaz na Netlfix. No mais, parabéns a Tatá Werneck, verdadeira craque do humor físico e rápido.

terça-feira, março 19, 2024

CORISCO & DADÁ



A Mostra Retrospectativa 2024 foi uma das mais diferentes desde que o Cinema do Dragão ressuscitou quando o Governo do Estado do Ceará assumiu o equipamento. Achei mais diferente até do que aquela estranha edição de 2021, com apenas uma sala funcionando e ainda com menos lugares disponíveis, por causa da pandemia e do distanciamento social, que forçou as salas de cinema a adotarem medidas mais protetivas. O diferencial da edição deste ano foi um foco maior no cinema brasileiro. Senti muita falta de pré-estreias internacionais e de filmes estrangeiros com perfil de única sessão, mas foi também muito bom ver a pujança do cinema brasileiro contemporâneo, com sessões antecipadas de grandes filmes que ainda ganharão o circuito ao longo deste ano, casos de O DIA QUE TE CONHECI, SEM CORAÇÃO, ESTRANHO CAMINHO, QUANDO EU ME ENCONTRAR e MAIS PESADO É O CÉU (esses últimos, infelizmente, acabei não vendo, por motivo de força maior). Um exibido e que já ganhou circuito há algumas semanas foi LEVANTE, de Lillah Halla.

Entre as sessões de clássicos, um dos melhores momentos foi a exibição, em glorioso 4K restaurado, de CORISCO & DADÁ (1996), muito provavelmente o filme mais popular de Rosemberg Cariry, e que eu lembro de ter visto na noite de abertura do Cine Ceará de 96, com o Cine São Luiz lotado. Lembro de ter gostado do filme na época, mas, desta vez, na revisão, o hoje clássico de Rosemberg subiu muito mais em meu conceito. Vi finalmente o cineasta como o homem que tomou para si a tarefa de usar o cinema para falar da mitologia cearense e nordestina, o que, aliás, só me mostra o quanto ainda sou devedor da obra do cineasta, especialmente de seus filmes anteriores a este.

Num mesmo filme Rosemberg inclui não apenas personagens lendários como os cangaceiros Corisco, Dadá, Lampião e Maria Bonita, entre outros de seus bandos, mas também o Cego Aderaldo (que ganharia um filme do diretor em 2012), o cineasta Benjamin Abraão e menções a Padre Cícero e a Beata Maria de Araújo. E Rosemberg faz isso com uma elegância formal admirável, com uma poesia visual de dar gosto.

Adoro os planos em que ele usa lentes especiais para filmar o movimento nos espaços abertos, como na cena em que Corisco se aproveita pela primeira vez do corpo da jovem Dadá, recém capturada da casa dos pais, com apenas 12 anos de idade. A violência é não apenas bastante presente no filme, como também é crescente na jornada de descida aos infernos de Corisco, à medida que ele vai ficando mais sedento por sangue. 

Eu estava curioso com o modo como o filme se insere nos dias de hoje, em que as pessoas estão muito mais atentas e talvez mais sensíveis à violência cometida contra a mulher e como isso se inseriria dentro de uma visão de certa forma romântica que muitos têm dos cangaceiros. Mas Rosemberg já deixa bem claro em sua obra o caráter trágico de seus heróis. Eles podem ser vistos como espíritos vivendo numa espécie de purgatório, que é o deserto nordestino da primeira metade do século XX, infestado por policiais em seu encalço, muita fome e gestações interrompidas pela situação em que viviam. 

Tanto Dira Paes quanto Chico Diaz estão fabulosos na caracterização de seus personagens e no modo como apresentam suas visões de mundo com palavras que oscilam entre a desesperança e a força de vontade de agir no meio daquele deserto. As cenas em que os personagens aparecem em espaços totalmente vazios, seja na caatinga ou próximos a um rio, acentuam o teor mitológico da história e daqueles personagens, como se o cineasta quisesse trazê-los de volta à vida com a força do cinema. E os traz.

No mais, ainda quanto à violência (mais uma vez), eu não estava preparado (não recordava, na verdade) para uma cena tão brutal, como uma que envolve a personagem de Virginia Cavendish. Na referida cena, um dos cangaceiros descobre que a esposa o está traindo e, segundo o código de ética deles, esse homem terá direito de matar a mulher. No caso, ele o faz a pauladas. E o diretor faz algo incrivelmente bonito e carregado de tristeza e dor, como se estivesse em prantos ao mostrar tal cena, especialmente no momento em que pétalas de flores brancas caem sobre o corpo morto da mulher.

Se CORISCO & DADÁ ainda não é considerado um dos grandes filmes do cinema brasileiro (o filme não comparece na lista de 100 melhores da Abraccine, por exemplo), acredito que um dia será devidamente percebido como a obra-prima que é.

+ DOIS FILMES

KILA & MAUNA

Acho que o que eu mais gostei de KILA & MAUNA (2023), de Ella Monstra, foi de seu visual a serviço do sentimento das personagens. A começar pelas primeiras imagens de uma delas que encontra, com ajuda de uma tecnologia (futurista?) uma amiga desaparecida. Para isso ela entra em contato com outra amiga em comum para ambas partirem numa missão. Não sei onde o filme foi rodado, se aqueles desertos foram filmados em alguma praia do Ceará ou se é computação gráfica, mas o que importa é que funciona. Pena que lá pelo final, talvez por estar um pouco disperso, tenha me desconectado com a trama, que tem ares lynchianos.

SOB A TERRA DO ENCOBERTO

O curioso deste SOB A TERRA DO ENCOBERTO (2022), de Libra e Xan Marçall, é que o filme bem que poderia aumentar uns três minutinhos de sua metragem para se adequar a um formato de longa-metragem, mas que prefere ser assim, marginal como um média-metragem. É um quase longa. É um filme que considero irregular em sua disposição de apresentar personagens trans ou travestis de diferentes partes do Brasil, enquanto também busca um lugar de cinema-poesia, a partir de construções visuais muito bonitas (direção de arte, figurinos, criação) que nunca deixam de ser essencialmente queer (ou talvez outro adjetivo seja mais apropriado). Entre as personagens do filme, gosto muito do jeito atrevido da travesti do Maranhão, e achei interessante o modo como o filme usa um único homem trans para representar vários. Pareceu pouco e talvez desproporcional, mas a escolha talvez tenha sido acertada, para que o filme flua melhor na duração escolhida.

domingo, março 17, 2024

ERVAS SECAS (Kuru Otlar Üstüne)



A primeira vez que ouvi falar em Nuri Bilge Ceylan foi quando do lançamento de ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA (2011) no Brasil. O filme foi bastante concorrido na reta final do prêmio Abraccine de 2013, mas o longa só havia sido exibido em São Paulo, no CineSesc, e isso talvez tenha prejudicado sua eleição como melhor longa-metragem estrangeiro pela associação, que acabou indo para TABU, de Miguel Gomes. O restante do país só receberia o filme de Ceylan nos cinemas no ano seguinte, como foi o caso de Fortaleza, que contou com uma gloriosa exibição (em película, se não me engano), em maio de 2014, no Cinema do Dragão.

De lá para cá, mais dois filmes do cineasta pintaram: WINTER SLEEP (2014), que recebeu a Palma de Ouro em Cannes, e A ÁRVORE DOS FRUTOS PROIBIDOS (2018). Curiosamente, o próprio cineasta também dirigiu documentários longos sobre o making of desses filmes. Mas creio que o mais novo trabalho do realizador, ERVAS SECAS (2023), seja o que mais me encantou, pelo menos desde ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA. Talvez até mais que esse, eu diria, pois mexeu com questões pessoais minhas, não apenas me deixando deslumbrado com uma direção primorosa e imagens em plano geral e close-up magníficas.

O ideal é chegar ao cinema sabendo o mínimo possível da trama ou dos personagens e se pegar envolvido com as quase 3h20min de projeção, que na verdade passam voando. No entanto, vou tomar a liberdade de encher meu texto de spoilers, já que sinto a necessidade de falar de certas cenas. Por isso, deixo aqui o aviso.

O protagonista de ERVAS ECAS é Samet (Deni̇z Celi̇loğlu), um professor de artes do ensino fundamental que vê a vida com muito amargor e isso é espelhado em suas aulas, pouco interessantes e com frequência criticadas pelos próprios alunos. Esse desgosto com a própria vida que leva faz com que certo grau de maldade o contamine, e faz com que se sinta superior às demais pessoas daquele vilarejo distante e inóspito da Turquia. 

Logo no começo do filme, ao voltar de um recesso escolar, ele presenteia uma de suas alunas favoritas com um espelho. A menina aceita com alegria e simpatia. O espelho, mais adiante, será confiscado por uma espécie de polícia da escola, que passa nas salas de aula verificando tudo o que as crianças trazem em suas mochilas. Entre os outros objetos confiscados, está também uma carta de amor de Sevim, a aluna favorita de Samet. Em determinado momento, Samet e outro colega, Kenan (Musab Eki̇ci̇), são acusados de estarem cometendo comportamentos inadequados com seus alunos e alunas. Eles acabam não sendo punidos pelo diretor da escola, mas saber dessas reclamações faz com que os dois fiquem bastante incomodados e curiosos sobre os exatos motivos das reclamações.  

Se o filme fosse só sobre essa questão, com o pano de fundo de um vilarejo situado onde o Judas perdeu as botas, com gelo por todos os lados e com cachorrinhos abandonados morrendo de frio pelas ruas, se fosse “só” sobre isso, já seria incrível, dada a capacidade de Ceylan de nos colocar naquele universo e fazendo, até então, uma espécie de “anti-filme de professor”. Ou seja, Samet é um sujeito que logo veremos como alguém no mínimo desagradável.

Mas eis que há uma espécie de lado B, algo inesperado e genial, que eleva o filme e o torna ainda mais incrível, em minha percepção, pois novas questões surgem, e o brilho na direção do mestre turco fica mais acentuado. Seu virtuosismo até então parecia contido. A cena do jantar entre o Samet e Nuray (Merve Dizdar, melhor atriz em Cannes), a militante de esquerda que perdeu uma perna numa explosão, já está entre as mais memoráveis do ano, ou da década.

Há um sentimento muito particular ali, que envolve o nosso próprio sentimento em relação a esse protagonista-narrador, mas não isento de nosso julgamento. Num mundo perfeito esse seria um estilo de caracterização vilanesca que gostaríamos de ver com frequência, tal a excelência e o tom mais sutis adotados na dramaturgia. O jantar entre Samet e Nurat era para ter sido a três. A mulher estava muito mais interessada em Kenan, um sujeito mais simpático, acolhedor e positivo que o cínico Samet. Ou seja, Samet, que não estava tão interessado na mulher, talvez por causa da perna amputada, aparece sozinho e entra no jogo de sedução mais para provar certa superioridade, além de fazer questão de magoar o amigo.

A cena do jantar é dividida em alguns momentos, todos pontos altos. A princípio, o realizador, de modo a nos manter interessados na discussão filosófica entre os dois, que guardam pensamentos muito distintos sobre a necessidade de se ter ou não um papel social, mantém um estilo mais discreto de direção. Samet é um homem egoísta, como ele mesmo afirma ser, que acredita que não temos a obrigação de sermos todos heróis. Nurat é idealista, e por isso acredita que a ação individual deve contribuir para a evolução e o bem-estar geral da sociedade. A conversa entre os dois é muito mais profunda do que tentei descrever nesse parágrafo e passa a impressão de que o trabalho de Ceylan é semelhante, de certa forma, ao de um grande novelista. A comparação com Fiodor Dostoiévski não tem sido à toa, já que o próprio protagonista guarda relação com o anti-herói de Crime e Castigo.

Acontece que, logo após a acalorada discussão, toda apresentada na simplicidade clássica do campo e contracampo, Ceylan aponta sua câmera de maneira muito particular, de modo a nos chamar a atenção para outros aspectos do filme, de nos deixar mais atentos a seu trabalho de direção. A câmera é apontada para as costas de cada um dos dois, como se criasse uma espécie de eclipse parcial do rosto deles, e a inquietação em nosso espírito se intensifica, especialmente quando Nurat se senta no sofá. O beijo e o que mais vem naquela noite parecem inevitáveis, mas nunca um beijo me pareceu tão desagradável. As lágrimas de Nurat são quase como lágrimas de uma mulher que estaria fazendo algo contra sua vontade, e o toque de Samet tem algo de repulsivo. Depois disso, há uma cena de natureza metalinguística, quando Nurat pede para que Samet apague as luzes da sala, e depois há a entrada no quarto para os momentos de maior intimidade.

Em determinado momento cheguei a pensar que ela pede para apagar as luzes, não por causa de seu corpo incompleto, mas como uma forma de se sentir menos incômoda em fazer sexo com aquele homem que está ali. Depois disso, há pelo menos uma outra sequência incrível, que é quando Nurat, chega sozinha à residência dos dois companheiros de casa, a fim de saber os motivos de Kenan não estar respondendo às suas ligações. O coitado havia ficado completamente arrasado ao saber da noite de sexo entre ela e Samet. E que espetáculo, a interpretação de Merve Dizdar! E que linda que é a cena dos três voltando de carro, vendo a neve caindo no parachoque. É novamente Ceylan mostrando que também é um mestre das paisagens no cinema.

Não é sempre que somos levados a esse tipo de experiência transcendental no cinema, em que questionamos até mesmo nossos níveis de maldade a partir da introdução de um personagem com toques dostoievskianos como Samet. ERVAS SECAS é uma obra que também nos faz mais empáticos com a dor do outro. Sim, o grande cinema nos encanta e ainda nos faz pessoas melhores.

+ DOIS FILMES

EU, CAPITÃO (Io Capitano)

Conheço pouco da filmografia de Matteo Garrone, mas o pouco que vi não me deixou muito animado. Junte-se isso às críticas negativas que EU, CAPITÃO (2023) tem recebido e o resultado foi algo melhor do que eu esperava, embora no final fique aquela sensação de mal estar que não necessariamente tem a ver com a jornada dura do herói. Garrone parece gostar de contos perversos e talvez por isso tenha feito PINÓQUIO (2019). Este novo filme até tem um quê da história do boneco de madeira, mas voltado muito mais para o mundo cão da vida real. Logo no começo, o jovem Seydou fala com a mãe sobre seu desejo de deixar o Senegal e ir embora para a Europa. A mãe fica revoltada e triste e logo o avisa que ele encontrará morte pelo caminho e coisas do tipo. Mesmo assim, Seydou e Moussa, seu primo, encaram atravessar meio mundo, com pouquíssimo dinheiro e pelo caminho ilegal, a fim de chegar ao continente rico. Garrone não se importa em pesar a mão na maldade humana e o resultado é uma espécie de road movie de sofrimento e dor. Talvez tenha me incomodado um pouco ser a visão de um italiano e não a de um senegalês contando a história. Mais do que a história em si.

A MENINA SILENCIOSA (An Cailín Ciúin / The Quiet Girl)

A simplicidade de A MENINA SILENCIOSA (2022), de Colm Bairéad, me encantou. Acontece que tenho um problema que me incomoda muito, que envolve quase todo filme protagonizado por crianças: acabam me dando sono. Com este não foi diferente, mas fiquei muito envolvido, especialmente na primeira e na última partes. Inclusive, aquele final, é difícil não se emocionar. O filme acompanha uma garotinha de família muito humilde e de educação embrutecedora. Ao ter a chance de ter contato com outra família, um casal mais velho que seus pais, ela passa a perceber outro tipo de sensibilidade, outro cuidar. O diretor, com experiência na televisão, em documentários e em séries, tem um cuidado visual que valoriza tanto os close-ups, trazendo muita ternura nas expressões, quanto na paisagem rural daquela Irlanda que parece um lugar esquecido do mundo.

segunda-feira, março 11, 2024

OSCAR 2024



Foi a melhor cerimônia do Oscar em muito tempo. Ainda vejo muita gente reclamando de uma coisa ou de outra, e talvez essa impressão tenha vindo do gosto ruim que o Oscar 2023 trouxe, especialmente pela premiação daquele filme de nome comprido que acho melhor até esquecer. Agora foi diferente. A raiva que eu tive foi mais do ponto de vista técnico, pessoal: não conseguia assistir à premiação pela MAX através da minha televisão sem pausas constantes no streaming. Muito irritante. E é um problema que preciso ainda resolver - pena que assinei essa joça por um ano. Ainda bem que deu certo ver pelo computador e usar o cabo HDMI. Melhor do que nada, ainda que isso significasse menor qualidade de imagem.

Mas falemos das coisas legais que a cerimônia trouxe. Posso começar logo pelo ponto alto da noite, que foi a apresentação do Ryan Gosling de “I’m Just Ken”, uma das canções de BARBIE, que concorria com duas, mas que acabou ganhando pela cantada por Billie Eilish (a pessoa mais jovem a ter dois Oscar, com apenas 22 anos). E o engraçado é que não via nada demais na canção do Ken no filme, mas a apresentação no Oscar, ao vivo, brincando com todo mundo ali presente, com o Ryan saindo da cadeira atrás da Margot Robbie, e depois aparecendo, até o Slash tocando guitarra no meio da coreografia que contava com os outros Kens do filme. Sensacional. Deu vontade de rever imediatamente.

A cerimônia como um todo não teve nada de muito diferente, nada de tapa na cara, ou alguém dizendo o nome do filme errado, mas, que eu me lembre, essas duas premiações específicas foram chatas e acabaram ganhando repercussão por causa desses eventos. Havia uma espécie de harmonia no ar, em parte pelo host da noite, que é muito tranquilo. Jimmy Kimmel só no final fez uma piada ácida com o ex-presidente Donald Trump, o que até me deixou bem surpreso, mas que trouxe mais uma vez à tona o caráter mais progressista do segmento “indústria de cinema”.

Das premiações, a que eu mais gostei foi a de Emma Stone por POBRES CRIATURAS, de Yorgos Lanthimos. Havia me deitado na cama naquele momento e levantei de alegria com seu prêmio. Já até estava conformado com a premiação de Lily Gladstone por ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES, mas o filme de Martin Scorsese acabou ficando sem nada. A própria Emma não estava acreditando e ficou atordoada e falou o quanto temia ter um ataque de pânico lá no palco. Uma graça, essa menina. Aliás, da categoria principal, o filme de Marty, MAESTRO, de Bradley Cooper, e VIDAS PASSADAS, de Celine Song, foram os únicos a saírem de mãos abanando. Até o mediano FICÇÃO AMERICANA teve o seu prêmio, de roteiro adaptado.

Outro prêmio também animador foi o de GODZILLA MINUS ONE, ganhando efeitos especiais de produções caríssimas realizadas nos Estados Unidos. Foi bacana ver esse grupo de japoneses conseguindo esse Oscar com poucos recursos. Também achei muito legal a estatueta de ator coadjuvante para Robert Downey Jr., um sujeito cheio de carisma e que tem uma trajetória de vida muito tortuosa. Legal ele ter vencido as drogas e conseguido esse sucesso na maturidade. Não sou muito fã de OPPENHEIMER, mas todo mundo já sabia que seria o grande vencedor da noite, e por mim tudo bem. Um bom filme, sim. E feito por um homem que tem ajudado a alavancar o IMAX como formato mais atraente da atualidade.

Aqui no Brasil, houve problemas na transmissão e perdemos até mesmo uma premiação (de curtas). Mas gostei que convidaram a Andrea Horta, essa moça incrível, que veio de família humilde e tem muita sensibilidade, inclusive para falar de cinema. Que ela retorne no próximo ano.

No mais, participei de três bolões e gostei muito da experiência. É divertido e adiciona uma dose extra de excitação e entretenimento para a noite.



Os Premiados

Melhor Filme – OPPENHEIMER
Direção – Christopher Nolan (OPPENHEIMER)
Ator – Cillian Murphy (OPPENHEIMER)
Atriz – Emma Stone (POBRES CRIATURAS)
Ator Coadjuvante – Robert Downey Jr. (OPPENHEIMER)
Atriz Coadjuvante – Da’Vine Joy Randolph (OS REJEITADOS)
Roteiro Original – ANATOMIA DE UMA QUEDA
Roteiro Adaptado – FICÇÃO AMERICANA
Fotografia – OPPENHEIMER
Montagem – OPPENHEIMER
Trilha Sonora Original – OPPENHEIMER
Canção Original – “What Was I Made For?”, por Billie Eilish (BARBIE)
Som – ZONA DE INTERESSE
Efeitos Visuais – GODZILLA MINUS ONE
Direção de arte – POBRES CRIATURAS
Figurino – POBRES CRIATURAS
Maquiagem e cabelos – POBRES CRIATURAS
Filme Internacional – ZONA DE INTERESSE (Reino Unido)
Longa de Animação – O MENINO E A GARÇA
Curta de Animação – WAR IS OVER! INSPIRED BY THE MUSIC OF JOHN & YOKO
Curta-metragem (live action) – A INCRÍVEL HISTÓRIA DE HENRY SUGAR
Documentário – 20 DIAS EM MARIUPOL (Ucrânia)
Curta Documentário – THE LAST REPAIR SHOP

domingo, março 10, 2024

MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA (Mandingo)



"Mandingo is racist trash, obscene in its manipulation of human beings and feelings (...)”
Roger Ebert


No ano passado, uma das três obras-primas incontornáveis que eu vi em casa foi OS NOVOS CENTURIÕES (1972). Neste ano, certamente, terei uma outra obra-prima de Richard Fleischer que guardarei com muito carinho no coração, MANDINGO – O FRUTO DA VINGANÇA (1975). É uma pena que eu tenha demorado tanto a escrever sobre o filme e não tenha aproveitado o impacto emocional próximo dos dias que o vi, cerca de um mês atrás. Tento remediar isso agora, meio que esnobando a temporada do Oscar, para falar de um filme de décadas atrás. Aliás, neste ano meio que desisti de tentar ver tudo o que é possível dentre os indicados ao prêmio da academia, principalmente quando não estão disponíveis nos cinemas. Não tenho mais tempo hábil para tal, já que o trabalho, o cansaço e demais atividades consomem o tempo. Além do mais, os filmes de outras épocas me são muito mais atraentes atualmente.

Quanto a MANDINGO, que filme incrível! E corajoso também por mostrar um tipo de sociedade que o próprio cinema parece querer esquecer. Afinal, mostra a vergonha que é/foi o modelo de sistema escravocrata, adotado principalmente no sul dos Estados Unidos e muito conhecido do brasileiro também. E Fleischer parece querer confundir certas audiências ao mostrar às vezes uma trilha sonora que remete à calma e à tranquilidade dos antigos westerns (a trilha é de Maurice Jarre), como se quisesse mesmo botar o dedo na ferida da questão da colonização e dizer: vejam o que era romantizado nos filmes da Hollywood clássica. 

O próprio cartaz lembra o de ...E O VENTO LEVOU, inclusive. O jeito que o filme é vendido parece, em alguns momentos, denotar algo de exploitation, mas o diretor faz um trabalho tão poderoso que cada detalhe da trama e cada fala e ação dos personagens faz perceber uma obra de grande sofisticação. E a violência, no caso, é essencial, eu diria, e não apelativa. Quando muitas pessoas criticam o uso da violência nos filmes, eu penso em A Ilíada, de Homero, cuja descrição detalhada das cenas de batalha e o impacto nos corpos dos homens de ambos os exércitos tornou a obra mais verdadeira para mim. É assim que vejo também no cinema, por mais que entenda que o grafismo na imagem em movimento seja muito mais difícil para pessoas mais sensíveis.

Na época de seu lançamento, boa parte da crítica caiu de pau em cima de MANDINGO, acusando-o de racista, obsceno, manipulador, explorador, como foi o caso de Roger Ebert, que ainda destaca a personagem de Susan George como excessivamente sensual, quando na verdade ela está fazendo o papel de uma mulher com necessidade de carinho e afeto, que era abusada sexualmente no seio familiar, que por não se casar virgem é odiada pelo marido e lhe é dito que não age da maneira que uma moça branca deveria agir e que tem um final trágico e muito triste, por ter feito algo que pode ser visto como uma abominação pela sociedade americana (tanto a do século XIX quanto a do XX): o sexo interracial. Além do mais, as cenas de sexo com ela não são exatamente confortáveis e sensuais; todas lidam com um mal estar presente na situação em que se encontra.

Felizmente, existem alguns ótimos defensores do filme, aqueles que, parece, compreenderam melhor as intenções de Fleischer. É o caso de Robin Wood, renomado crítico britânico que escreveu um belo texto chamado “’Mandingo’: The Vindication of an Abused Masterpiece”. Wood destaca o quanto essas pessoas que odiaram o filme são predominantemente formadas por homens brancos, e possivelmente  podiam temer que nos Estados Unidos da década de 1970 o filme poderia incitar uma espécie de revolução por parte da população negra, que começava a se impor de maneira mais forte na sociedade.

MANDINGO se passa nos anos 1840 e, na trama, um proprietário de escravos (Perry King) treina um homem negro recém-adquirido (Ken Norton) para lutar com outros homens escravizados usados para competir em embates apostados, como cães ou galos de briga, podendo, inclusive, nessas lutas, matar ou morrer. Antes disso, o filme nos deixa a par do funcionamento daquele sistema escravocrata, em que o patriarca (James Mason) usa uma criança negra para ficar debaixo de seus pés a fim de passar para o menino sua doença – eles acreditavam (será?) que aquilo poderia curar a doença do velho.

Naquela sociedade também era comum os homens brancos terem suas escravas de estimação para o sexo mais livre, por assim dizer. Hammond, o personagem de Perry King, tem um carinho especial por Ellen (Brenda Sykes) e diz a ela que se casará com uma mulher branca (Susan George), mas que nunca deixará de ter seus encontros com ela. Ellen, em determinado momento, quando engravida de Hammond, implora a ele que o filho da relação dos dois nasça livre. Essa é uma das inúmeras cenas incômodas e tristes do filme. Outras tantas virão, e o final... o final é algo tão forte que acho preferível não destacar aqui, deixar para aqueles que querem dar uma chance ao filme e darem de cara com uma das obras mais fortes e cruéis já feitas em Hollywood.

Richard Fleischer é um cineasta que começou fazendo filmes baratos na década de 1940, ora dramas familiares, ora comédias, e depois entrou entre os grandes nomes do filme noir, com títulos como ALMA EM SOMBRAS (1949) e IMPÉRIO DO TERROR (1950), e que se adequou incrivelmente ao clima de pessimismo e crueza do cinema da Nova Hollywood na década de 1970.

Filme visto no excelente box A Arte de Richard Fleischer.

+ DOIS FILMES

FICÇÃO AMERICANA (American Fiction)

Em vários momentos, FICÇÃO AMERICANA (2023), de Cord Jefferson, parece o piloto de alguma série que pode melhorar com o tempo, mas que não promete ser muita coisa em suas duas horas de apresentação. Em outros momentos, me parece materializar o tédio do personagem de Jeffrey Wright no próprio andamento narrativo, por mais que coisas emocionantes não faltem em sua vida, como a questão da doença da mãe, de uma morte em família, do sentimento de rejeição do irmão e um namoro. E em outros momentos, tem aquela coisa meio engraçadinha de certos filmes que lidam com o bloqueio criativo. De todo modo, é um filme que procura trazer à tona aquilo que é muito comum de se ver em obras que trazem o drama de personagens negros, que acabam descambando num clichê. Felizmente os personagens do filme não têm esse problema, creio eu. Não que isso ajude muito.

A COR PÚRPURA (The Color Purple)

Nunca vi a versão de Steven Spielberg (só alguns trechos na televisão), mas é fácil entender quando dizem que esta versão musical da história traz mais leveza ao drama dos personagens. Apesar de não ser nada fã das cenas musicais, fiquei bastante envolvido com a história de Celie, uma jovem que (depois de ser obrigada a dar seus dois bebês) é vendida a um homem que a usa como escrava, enquanto lhe nega contato com a irmã. A história de A COR PÚRPURA (2023), de Blitz Bazawule, vai ficando melhor quando surge em cena a personagem da cantora de blues, vivida por Taraji P. Henson, e na relação de amor que se constrói entre as duas. As cenas de virada da protagonista são muito boas e reacendem o interesse pela história. A última cena é bem bonita e emotiva.

quinta-feira, março 07, 2024

TENEBRE



Um dos motivos para que as obras-primas do giallo sejam tão cultuadas está no quanto elas crescem nas revisões. Na primeira vez que vi TENEBRE (1982), de Dario Argento, não tive o mesmo impacto que desta vez, em fevereiro. Fiquei maravilhado com cada cena, com a beleza da violência estilizada, com o visual que deixa o filme num tempo não estabelecido e com o tom onírico aplicado. Tudo a ver com o fato de que Argento estava saindo de uma pausa de sete anos dos gialli, vindo de dois filmes de horror de bruxas, as também obras-primas SUSPIRIA (1977) e A MANSÃO DO INFERNO (1980). Ou seja, naquele momento da carreira, o maestro estava no auge.

Essa impressão de necessidade de revisão constante dessas obras se dá, possivelmente, por se sustentarem num material de sonho, como se o diretor adentrasse um outro território de nosso cérebro, inclusive por não estar tão interessado em racionalizar. Ou seja, TENEBRE e outras obras do tipo ficam arquivadas no mesmo compartimento de nossa mente onde guardamos a lembrança dos sonhos. E apesar de haver uma trama bem pensada – e eu gosto muito das revelações quanto à identidade do assassino, por exemplo –, claramente a força maior do filme está na construção das cenas, em especial das cenas de assassinato ou de perigo extremo, ao som da excelente trilha sonora.

O assassinato das duas amigas em seu apartamento, a incrível perseguição de uma garota por um cachorro, a amputação do braço de uma mulher e sangue esguichado pintando de vermelho a parede (um espetáculo visual!), o fechamento que é puta catarse. E Argento ainda trata no mesmo filme de rebater ou jogar mais lenha nas acusações de sexismo, ao trazer um protagonista que muito lembra o próprio realizador na condição de escritor de romances criminais com violência extrema.

Na trama, o escritor Peter Neal (Anthony Franciosca), em seu caminho para Roma a fim de promover seu novo livro intitulado “Tenebre”, descobre que alguém que leu o seu romance o está usando como citação explícita em seus homicídios – as vítimas são encontradas com páginas do livro em suas bocas. O escritor é visitado pela polícia, encabeçada pelo detetive Germani, vivido por Giuliano Gemma, e, à medida que mais pessoas vão morrendo, mais ele pretende se aproximar do crime para descobrir a identidade do assassino. O curioso é que, mesmo eu, que não curto muito um whodunit, fiquei muito interessado em tentar descobrir a identidade do serial killer, até porque boa parte dos personagens da trama vão morrendo pelas mãos do sujeito de luvas pretas.

TENEBRE é o tipo de filme em que cada cena é empolgante, mas obviamente os destaques são mesmo as cenas de suspense e gore. A relativamente longa cena da perseguição da adolescente por um dobermann dos infernos é incrível. No começo, ela briga com o namorado, desce da moto, é atacada por um bêbado, corre, fica irritada com o cachorro, que pula a cerca e a persegue dentro de uma floresta, e em seguida ela invade uma casa, justamente a casa do assassino, onde descobre fotos das vítimas. Podemos dizer que este momento fecha o lado A, por assim dizer. E, por que incrível que pareça, TENEBRE ainda consegue se manter tão ou até mais interessante depois desta cena, quando a identidade do assassino se torna ainda mais intrigante, levando a um dos finais mais intensos da filmografia de Argento, com aquela imagem magnífica de Daria Nicolodi.

Este filme de Argento é muitas vezes associado a algumas obras de Brian De Palma, já que cineasta americano homenageou o maestro em pelo menos duas ocasiões, SÍNDROME DE CAIM e PAIXÃO, em que determinada cena é “repetida”.

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O ESTRANHO VÍCIO DA SRA. WARDH (Lo Strano Vizio della Signora Wardh)

A estreia de Sergio Martino no mundo dos gialli foi com este sensual O ESTRANHO VÍCIO DA SRA. WARDH (1971), de Sergio Martino, nascido após o diretor ter iniciado com três documentários e um western spaghetti. Ou seja, o diretor vinha de territórios um pouco mais concretos, antes de ingressar nesse mundo quase abstrato, o dos gialli. Talvez por isso este filme não seja do tipo tão viajante, o que não quer dizer que não existam imagens bastante próximas da atmosfera de sonho, em especial os flashbacks e os pesadelos de Edwige Fenech com um homem com quem teve um relacionamento de sadomasoquismo no passado e que a deixou traumatizada. Agora casada, esse homem aparece novamente em sua vida, assim como um primo que veio da Austrália (George Hilton). Esses três homens se mostrarão fundamentais para a conclusão da trama, que dá um ar ainda maior de misoginia, apesar da punição no final. Algumas cenas de assassinatos são construídas com uma boa dose de suspense e tensão, outras têm uma preocupação maior com a plasticidade e outras são um pouco escuras demais para se julgar. No mais, Fenech está adorável em seu misto de coragem e fragilidade.

JOE – DAS DROGAS À MORTE (Joe)

Na época que JOE – DAS DROGAS À MORTE (1970) saiu em home video no Brasil, a revista SET deu apenas três estrelas, mas o colocou como um dos destaques do mês. Não foi o suficiente para me deixar interessado e só agora, graças ao divertido testemunho de Quentin Tarantino em seu livro Especulações Cinematográficas, em que conta quando viu o filme quando criança, com seus pais, no cinema, aí sim me chamou a atenção. No caso, o texto do Tarantino é cheio de spoilers, mas isso não tem problema para mim. JOE é desses filmes que, infelizmente, não envelheceram. No Brasil dos dias de hoje o personagem seria claramente identificado com um bolsonarista. Na virada para os anos 1970, ele representa o cara de direita que tem uma coleção de armas e muito ódio da contracultura e de tudo o que ela trouxe para a sociedade daquele tempo. Eis que a amizade, por assim dizer, dele com um homem que mata um traficante por acidente os leva a momentos às vezes divertidos, às vezes chocantes e tensos. Adoro, por exemplo, as cenas em que os dois vão parar numa casa de hippies e acabam por aproveitar a orgia e a maconha disponíveis. É interessante como esse cinema da Nova Hollywood queria mesmo romper com a antiga tradição, inclusive no quesito nudez, algo mais comum de se ver, na época, no cinema europeu. Talvez o problema do filme seja tornar Joe um sujeito simpático e não a figura odiosa e perigosa que é. Avildsen vinha de dois filmes meio exploitation e se tornaria mais famoso com o sucesso de ROCKY, UM LUTADOR (1976).

domingo, março 03, 2024

DUNA – PARTE DOIS (Dune – Part Two)



Denis Villeneuve entra na mitologia de Blade Runner com sua obsessão por histórias familiares. Desde seu longa de estreia, 32 de AGOSTO NA TERRA (1998), que a questão da paternidade é tratada com profundidade e seriedade. Isso seria levado adiante em filmes tão distintos como INCÊNDIOS (2010), O HOMEM DUPLICADO (2013) e A CHEGADA (2016). A intersecção entre esses filmes inclui pessoas que se sentem deslocadas e se veem diante de um elemento-surpresa ou um desafio que as fazem questionar os seus papéis na existência.

Esse parágrafo em itálico acima foi escrito por mim quando escrevi a respeito de BLADE RUNNER 2049 (2017), primeira experiência com sci-fi do cineasta canadense. Foi bom eu reler este trecho do texto e ver o quanto essa questão da família e da paternidade segue presente neste projeto ainda mais ambicioso do diretor, a adaptação do romance de 1965 de Frank Herbert, Duna.

DUNA – PARTE DOIS (2024) é de bem mais fácil compreensão que o primeiro filme (2021), que tinha a difícil tarefa de apresentar os conceitos, os personagens, os embates entre as raças etc. Falo difícil, mas a impressão que temos vendo esta sequência é que Villeneuve faz parecer que foi fácil. E sabemos o quanto as duas adaptações de Duna para o cinema tiveram histórias muito tortuosas. A versão de Alejandro Jodorowsky nem saiu do papel e tinha a intenção de ter 14 horas de duração e contaria com um time dos sonhos. Já a versão dirigida por David Lynch conseguiu sair do papel, mas ficou uma coisa quase incompreensível para quem não leu o livro de Herbert, e uma experiência traumática para Lynch, que nunca mais faria projetos de encomenda novamente (graças a Deus!).

DUNA – PARTE DOIS se demora mais no deserto e começa de onde o primeiro parou, com Paul Altreides (Timothée Chalamet) e sua mãe grávida, Lady Jessica (Rebecca Ferguson), se juntando ao grupo de guerreiros do deserto, os Fremen, por sobrevivência, mas também para planejar uma vingança contra os Harkonnen. No primeiro filme, o pai de Paul, o Duque Leto (Oscar Isaac) é assassinado e quase toda a família Atreides é dizimada pelas tropas do Barão Vladimir Harkonnen, vivido por um Stellan Skarsgård quase irreconhecível em toneladas de maquiagem para criar uma figura tenebrosa. E falando em tenebrosidade, que fantástica que está Rebecca Ferguson, num papel cheio de ambiguidades, sendo ela uma espécie de bruxa manipuladora, mas também dotada de grande sabedoria e conhecimento. Sem falar no visual, no figurino, nas expressões de seu belo rosto. Aliás, falando em figurino, esse é outro destaque desta produção.

Villeneuve faz um filme ambicioso, mas é cinema clássico-narrativo à moda antiga, até lembrando, e não apenas por causa do deserto, LAWRENCE DA ARÁBIA, de David Lean, se distanciando ainda mais de suas realizações canadenses de início de carreira. Com relação a outras semelhanças com outros trabalhos seus, destaco o impacto da consciência, da manifestação da verdade, algo que acontece em INCÊNDIOS e em A CHEGADA. Inclusive, é citado neste filme o quanto o poder da especiaria promove em certas pessoas uma percepção única entre passado, presente e futuro, de certa forma lembrando a comunicação com os extraterrestres de A CHEGADA. Aqui essa visão é conseguida de maneira mais forte através de uma poção que potencializa os poderes místicos de Lady Jessica – e, mais adiante, de Paul, quando ele passa a aceitar sua posição como líder que mudará o destino daquele universo, mesmo sabendo que isso poderá ocasionar milhões de mortes numa chamada guerra santa.

Achei que o filme podia ter explorado um pouco mais o relacionamento amoroso entre o herói e Chani (Zendaya), mas acredito que isso não seria possível sem aumentar ainda mais a metragem. Dizem, aliás, que a Chani de Villeneuve é diferente da Chani de Herbert. A de Villeneuve tem uma personalidade mais forte, é muito menos submissa, por assim dizer. Ela representa o grupo do norte do planeta, que não acredita que Paul é o messias, que vê tudo como uma superstição do povo do sul. Já o grande Javier Bardem faz um Stilgar muito simpático, o personagem que representa o alívio cômico do filme.

As mudanças de cenário e as apresentações de novos personagens são feitas com muita segurança, e em blocos narrativos. Mesmo personagens com menor tempo de cena, como os vividos por Austin Butler, Florence Pugh e Christopher Walken, ganham muita força na trama. Este segundo filme reforça uma questão complexa e delicada, como o uso da religião como alavanca para a chegada ao poder a partir da fé dos fiéis.

Com o sucesso de público e crítica de DUNA – PARTE DOIS, acredito que Villeneuve conseguirá carta branca para o terceiro filme, adaptando o segundo livro, O Messias de Duna, romance bem menos volumoso lançado originalmente em 1969. E mesmo que não consiga, este segundo já se encerra de forma brilhante, com um mal estar associado a uma vitória. No mais, que som, que cuidado técnico, que amor pelo texto de Herbert. 

Quem puder ver numa sala IMAX, opte por esse tipo de sala. Quem não tiver IMAX em sua cidade, procure a maior e melhor tela. É filme pra se ver em tela gigante e com som de primeira. 

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BEEKEEPER  REDE DE VINGANÇA (The Beekeeper)

Exemplo clássico de filme que começa muito bem, explorando o crime, o justiçamento e a violência brutal (chega a ser um exploitation de alto orçamento). É fácil se divertir no primeiro momento de BEEKEEPER - REDE DE VINGANÇA (2024), mas rapidinho a história parece não saber mais para onde ir e o carisma de Jason Stathan e as situações de ação envolvendo esse exército de um homem só não são suficientes para manter o filme bom até o final. Até a violência deixa de ser interessante e extrema e se torna algo entorpecente no filme de David Ayer, quando o herói aparece quase invencível, disputando sem nenhuma arma vários homens armados ao mesmo tempo. Ainda assim, é possível se divertir com as cenas, com os vilões, com o FBI totalmente imprestável, como também é possível lembrar-se da era dos filmes de justiceiros impiedosos (franquias Dirty Harry, Desejo de Matar etc.), para o bem e para o mal.

AQUAMAN 2 – O REINO PERDIDO (Aquaman and the Lost Kingdom)

Um caso de filme que foi tão malhado pela crítica e pelos fãs que a gente vai ver até com um olhar mais generoso. Não que AQUAMAN 2 – O REINO PERDIDO (2023) não tenha merecido tantas críticas negativas, mas há uma coisa ou outra que merecem ser destacadas. Destaco principalmente o visual das naves submarinas, que parecem saídas de algum romance sci-fi do século XIX, com sua ambientação retrô. A primeira luta entre a nave do Arraia Negra com o exército dos povos atlantes tem seu charme. Até considero o vilão (Yahya Abdul-Mateen II) mais interessante que o herói. Aquaman é aquele herói tão preguiçoso que sua preguiça contagia. E Amber Heard seria apenas a esposa bonita e apagada se não lhe dessem algumas cenas de ação perto do final. Já Patrick Wilson é aquele personagem sem muita personalidade, que funciona como escada para o herói. Além do mais, por ser parceiro de James Wan, fica mais uma vez a impressão de um contrato por amizade. O filme é cheio de problemas de montagem e ritmo, mas não o vejo como a mais desastrosa produção da DC Warner do ano. Esse título fica com SHAZAM! FÚRIA DOS DEUSES. No entanto, não deixa de ser triste quando a comparação feita a um filme passa a ser com os piores.